domingo, 16 de abril de 2017

A Canção do Cretáceo



Em minhas aulas de metodologia de pesquisa, quando preciso deixar claro porque devemos testar e confrontar nossas observações com a de outros colegas pesquisadores, pois nossos sentidos, infelizmente, tende a nos enganar com frequência, costumo contar a história dos três cegos e o elefante. Tendo eles tocado cada um uma parte do animal, descreveram- o elefante como sendo um animal colunar e roliço; comprido e maleável; uma parede curva igual a um tambor. A briga irrompeu entre os cegos, pois cada um tinha certeza do que havia “visto” e não desejava abrir mão ou complementar sua visão do que era um elefante. As ciências, em especial a paleontologia, são feitas de modo parecido. Cada pesquisador observa e coleta dados, os organiza em informações e então os coloca a prova de seus pares. Quando bem feita (leia-se: testada e discutida) as visões se completam e nós temos uma ideia um pouco melhor de como se parece mais uma parte da realidade. Esta, no entanto, é uma curva que tende ao infinito e provavelmente nunca veremos o quadro completo.
Na Paleontologia lidamos com animais e plantas que não existem mais e que existiram em um contexto ambiental e geográfico que também desapareceu. Recolhemos os fósseis e as rochas onde eles são encontrados e tentamos, como os cegos, enxergar algo, mas só temos a visão parcial, quando muito fragmentada, do quê e como aquele ser se parecia ou onde viveu. Para preencher os espaços nos valemos da comparação e da máxima dita por James Hutton: O presente é a chave para o passado. Reunimos nossos fósseis quebrados e dispersos e procuramos no que existe hoje qualquer coisa que seja parecida e nos permita inferir e especular sobre como o organismo teria sido.
Em termos leigos, é um chute, mas feito com embasamento. Como tudo mais na ciência ele deve ser passível de verificação e, embora a comparação morfológica seja útil para ossos, ela deixa a desejar quando entramos em tecidos e partes que não se preservam, órgãos como pele, coração, nervos, tudo isso é perdido e somente nas melhores, mais oportunas e raras condições se preservam, as chamadas langerstätten. Depósitos fósseis com excelente grau de preservação e informação (Hozl & Simões, .
Thomas Huxley, amigo muito próximo de Darwin e um de seus mais fiéis escudeiros, já havia inferido uma proximidade entre aves e dinossauros dada a morfologia dos mesmos. Isso contrariava as reconstruções especulativas de Richard Owen, na época que aproximavam dinossauros dos lagartos e os colocavam como pesados e lentos repteis. Owen foi o criador da palavra “Dinossauro” e também o primeiro a realizar reconstituições dos mesmos em vida. Ele também cometeu o erro de considerar o polegar afiado do Iguanodon como sendo um chifre nasal, pois sua visão de répteis lerdos e quadrupedes não aceitava um animal bípede facultativo com leve manobrabilidade manual. A visão de Huxley só foi confirmada com a descoberta do famoso Archaeopteryx lithographica (Meyer, 11861) em que não apenas a estrutura osteológica aviana era evidente como a preservação das penas fazia do local onde foi achado uma langerstätte importantíssima.
Owen - ferrenho opositor de Darwin - e Huxley ainda trocariam longas discussões sobre a herança do Archaeopterix, e dinossauros ainda seriam vistos como lagartos por mais meio século, mas a introdução da sistemática cladística e mais achados fósseis colocaram à prova essa informação e hoje reconhecemos as aves como dinossauros. As semelhanças são tantas que é comum encontrar na literatura cientifica o termo “non-avian dinosaur” (dinossauro não-aviano), para se referir aos dinossauros que não são aves.
Dois outros trabalhos importantes de Huxley voltam a se unir. Sabemos agora que aves são dinossauros e que esses são um grupo-irmão dos Crocodylomorpha. Em seu trabalho de 1875, Huxley apresenta a primeira classificação com base na evolução do palato secundário dos Crocodilos, anos antes ele havia descrito e nomeado o órgão vocal único das aves: a siringe (Huxley, 1872).
A proximidade dos dinossauros não-avianos com aves e crocodilos, confirmada pela osteologia, nos permite inferir com mais segurança os detalhes que não se preservaram de seus fósseis, já que temos o suporte de dois grupos com representantes vivos que podemos observar. Assim, podemos testar nossas especulações ao traçarmos comparações com esses grupos. A esse teste nos referimos como extant phylogenetic bracket (Witmer, 1995). E podemos usar um exemplo aqui:
Qualquer estudante de ensino médio ou biologia sabe que o coração dos vertebrados é radicalmente diferente entre os agrupamentos clássicos. Peixes possuem um coração tubular com 3 câmaras com circulação unidirecional. Anfíbios possuem a divisão entre átrio e ventrículo, com dois átrios, mas apresentam mistura sanguínea no ventrículo único. Répteis apresentam uma divisão parcial dos ventrículos, mas ainda mistura sangue, sendo uma exceção os Crocodilia que possuem o coração dividido em quatro câmaras, tal quais os “vertebrados superiores”, aves e mamíferos (Hildebrand & Goslow, 2006).
Como seria o coração dos dinossauros?
O senso comum herdado de Owen nos diz que provavelmente do tipo réptil com três câmaras, apresentando mistura sanguínea. Mas sabemos hoje que dinossauros são próximos tanto de Crocodilia, quanto de aves, grupos com um coração dividido em quatro cavidades. Se aplicarmos a regra do suporte ancestral, é muito menos custoso que o ancestral comum de Crocodilos e aves já tivesse um coração com quatro cavidades e que ambos os grupos tenham herdado essa condição. Como dinossauros-não avianos é um grupo intermediário, ele recebe suporte dos grupos atuais e podemos inferir com relativa segurança que possuíam um coração com quatro cavidades.
Um leitor mais atento (e torço para que alguns dos meus alunos sejam esse leitor) pode observar que Crocodilia apresenta alguma mistura sanguínea, sendo realizada por um foramen aberto entre os dois arcos aórticos conhecido como foramen de panizza. Essa característica só ocorre em Crocodilia, estando ausente em aves e mamíferos, e é reconhecida como uma adaptação a ocupação tardia do ambiente aquático (Seymour et al., 2004), como dinossauros nunca fizeram uma transição total para o modo de vida semi-aquático ou aquático como os crocodilianos, então não há suporte para essa característica.


Figura 1: Dois exemplos de inferência positiva para estruturas não preservadas. Em A) suporte positivo ancestral para o coração com quatro cavidades em dinossauros não-avianos; em B) suporte positivo ancestral para penas em Hesperornis. Archaeopteryx pode ser usado para suporte, já que preservou as penas. (Imagens modificadas de Witmer, 1995)
Algumas questões ainda escapam desse teste de inferência a medida que ele necessita que o grupo fóssil possua grupos atuais para dar uma sustentação. Assim, a endotermia dos dinossauros ainda é debatida, já que aves são endotérmicas, enquanto que crocodilianos atuais são ectotérmicos e não temos como saber se as formas terrestres do Mesozóico eram endotérmicas ou ectotérmicas. Embora autores como Seymour et al. (2004) considerem a ectotermia dos crocodilianos atuais como uma adaptação ao modo de vida aquático (Figura 2). Outra questão debatida era a vocalização produzida pelos dinossauros.

Exemplode inferencia equivocada. Não é possível confirmar a ectotermia ou endoterma para dinossauros não-avianos (imagem modificada de Witmer, 1995).

Quando se trata da vocalização dos dinossauros somos como o cego que comparou a barriga do elefante com um tambor. Nosso senso comum dita que os predadores rugem, mas a maioria dos predadores que estamos acostumados são mamíferos como nós, com uma laringe, faringe, cordas vocais e aparato vocal semelhante ao nosso. Como a narrativa cinematográfica precisa que as pessoas tenham medo dos dinossauros, as reconstituições os fazem rugir como leões. Para os paleontólogos tentando inferir o som dos dinossauros a pergunta era diferente: dinossauros piavam, cantavam e grasnavam como aves ou emitiam sons de baixa frequência como os crocodilos?
A vocalização dos crocodilos e aves difere consideravelmente, dos primeiros é produzida pela laringe, enquanto as aves possuem um órgão único aqui já mencionado, a siringe, nomeado e descrito por Huxley (1872). A siringe é um órgão particular, relacionado à respiração de sentido único por sacos aéreos das aves. Situa-se na base da traquéia, na bifurcação dos dois brônquios, É formada por um conjunto de anéis traqueobronquiais de cartilagens mineralizados unidos a anéis de músculos (Figura 3). Esse conjunto é sustentado por um par de membranas situadas na base de cada brônquio. Pássaros canoros possuem entre cinco a nove pares de músculos siringeais, psitacideos em torno de três pares, enquanto falconiformes possuem dois pares. O restante das aves em sua maioria possui apenas um par. Já urubus, cegonhas e ratitas (avestruzes e outras aves que não voam) não possuem músculos siringeais (Pough et al., 2003; Hildebrand & Goslow, 2006; Clarke et al, 2016).

Figura 3: Desenho esquemático da siringe. 1: ultimo anel traqueal cartilaginoso livre, 2: tympanum, 3: primeiro grupo de anéis siringeais, 4: pessulus, 5: membrana tympaniformis lateralis, 6: membrana tympaniformis medialis, 7: segundo grupo de anéis siringeais,  8: brônquio principal, 9: cartilagem bronquial.

Portanto, sabemos que as aves mais basais, as ratitas, (Grealy et al, 2017) possuem uma siringe muito simples. Não sabemos, no entanto, se dinossauros já possuíam esse órgão e nesse caso o suporte ancestral não parece nos ajudar, já que Crocodilia não possui siringe. Para responder a questão primeiro precisamos saber quando a siringe surgiu, sendo um órgão composto de tecidos moles as chances de preservação são pequenas. Porém, no final do ano passado Clarke et al (2016) descreveram a primeira siringe fossilizada para a ave fóssil batizada de Vegavis iaai Clarke et al 2005 (Figura 4).

Figura 4: A siringe do Vegavis iaai vistos por tomografia computadorizada (Clarke et al., 2016). Os número I-IX indicam os anéis de cartilagem mineralizados.

O pequeno ganso do Cretáceo Superior trouxe repercussões na mídia que rapidamente divulgou a descoberta como a interpretação final de como os dinossauros vocalizavam. Abundaram vídeos dos animais de Jurassic Park dublados por patos e gansos. Embora seja hilário imaginar  um Tryannosaurus grasnando, algo que os autores não afirmam em momento algum do artigo, a conclusão deles se apresenta bem conservadora. Embora a descrição de uma siringe complexa com nove elementos mostre que o órgão atingiu uma complexidade rápida dentro de aves, ela ainda só ocorre em aves! E eles não poderiam ter deixado mais didático no cladograma que apresentaram (Figura 5).

Figura 5: Cladograma indicando os nós e os passos de surgimento da siringe. Observe que o Clado Archosauria ´(Crocodilos + Dinossauros) é sustentado pelo aparecimento de aneis pouco ou nada mineralizados. Enquanto que o Clado Aves ocorre o aparecimento de anéis mineralizados marcadno o surgimento da siringe. Ao lado o esquema mostra as diferenças de aparelho vocal de um Crocodiliano e de uma Aven.


No cladograma são comparados Crocodilia, representados por Alligator mississipiensis, e Aves representadas por Palaeognathae (Ratitas) e Neognathae, basicamente todas as outras aves existentes. As únicas espécies extintas são Presbyornis e Vegavis. O surgimento da siringe marca o inicio de Aves, temos então diferenciação e mineralização dos anéis traqueobronquiais e origem da musculatura que alterna a tensão das membranas e aberturas bronquiais. Essa é a condição dos Palaeognathae. Qualquer um que já ouviu os tum tum tum produzidos por um avestruz ou ema, agora vai saber que isso se deve a falta do pessulus, uma estrutura ossificada e robusta localizada na linha média da passagem de ar dos brônquios onde membranas vocais se prendem. Vegavis e todos os Neognathae possuem um pessulus.
O cladograma sabiamente omite dinossauros não-avianos. Mas se tentássemos o extant phylogenetic bracket para onde eles penderiam? Provavelmente para o lado dos Crocodilia. Clarke et al (2016) colocam de maneira bem clara, a fossilização de uma siringe depende da mineralização dos anéis traqueobronquiais. Quando a mineralização é inexistente, como ocorre em Crocodilia, a preservação não ocorre. A ausência de preservação dessas estruturas em dinossauros não-avianos seria pelo mesmo motivo dos Crocodilianos: eles não possuíam anéis traqueobronquiais mineralizados (Figura 6). Como os anéis mineralizados são uma das exigências para a siringe, dinossauros não as teriam, desse modo precisamos olhar para outras hipóteses tais como a vocalização laringeal dos crocodilianos, câmaras de ressonância como  ocorriam em alguns grupos como o Parasaurolophus ou até a mais triste de todas: eles serem mudos (Wheishampel, 1981; Evans, 2006, Senter, 2008). Teríamos então, até o surgimento da siringe no Cretáceo, a maior parte do Mesozoico dominada por coachar de rãs, barulhos de insetos e o ribombar dos crocodilianos. Mas os gigantes dominantes dessa época passariam silenciosos. Regentes mudos contemplando em silêncio seu reino. Por sorte, seus fósseis são bem tagarelas.

Figura 6: Teste da presença de siringe em dinossauros não-avianos através do extant phylogenetic bracket. A inferencia é equivocada e negativa. Como apenas aves apresentam siringe não ocorre o suporte ancestral.




REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS



CLARKE, J. A., et al. 2016. Fossil evidence of the avian vocal organ from the Mesozoic. Nature. 538, 502–505
EVANS, D. C. 2006. Nasal cavity homologies and cranial crest function in lambeosaurine dinosaurs. Paleobiology 32, 109–125.

GREALY, A., ET AL. 2017. Eggshell palaeogenomics: Palaeognath evolutionary history revealed through ancient nuclear and mitochondrial DNA from Madagascan elephant bird (Aepyornis sp.) eggshell. Molecular Phylogenetics and Evolution.

HILDEBRAND, M.; GOSLOW, G. Análise da estrutura dos vertebrados, 2a edição, São Paulo: Atheneo Editora, 2006.
 

HOLZ, M.; SIMÕES, M. G. 2002. Elementos fundamentais de tafonomia. Ed. Universidade.

HUXLEY, T. H. 1872. A Manual of the Anatomy of Vertebrate Animals. Appleton.



HUXLEY, T. H. 1875. On Stagonolepsis robertoni, and on the evolution of the Crocodylia. L. L. D., Sec. R. S. F. G. S. 423-438.
  


POUGH, F. H.; HEISER, J. B.; McFARLAND, W. N. 1993. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 754 p.
  
SENTER, P. 2008. Voices of the past: a review of Paleozoic and Mesozoic animal sounds. Hist. Biol. 20, 255–287.

WEISHAMPEL, D. B. 1981. Acoustic analyses of potential vocalization in lambeosaurine dinosaurs (Reptilia: Ornithischia). Paleobiology 7, 252–261.

WITMER, L. M. 1995. The extant phylogenetic bracket and the importance of reconstructing soft tissues in fossils. Functional morphology in vertebrate paleontology, 1, 19-33.

 



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