sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Curvas de Medeia



Histórias inventadas sempre trazem lições ou visões da época em que foram escritas. Não por acaso, avanços científicos normalmente são alvo da suspeita dos leigos. Nesse ponto, as histórias de ficção científica traduzem esses medos e pavores, as vezes de modo exagerado e não realista, quase sempre buscando uma pergunta filosófica no campo da moral e ética: devemos fazer o que estamos fazendo com essa nova tecnologia? Devemos brincar de Deus dessa maneira?
Se a ciência não reconhece mais a alma então podemos brincar com corpos humanos e os trazer de volta a vida? Se a radiação causa mutações, pode ser usada para criar monstros? Androides sonham com ovelhas elétricas? É da nossa alçada brincar com o DNA e trazer organismos que já se extinguiram de volta a vida?

(Como o leitor já deve ter percebido, será um texto sobre Jurassic Park).

O medo diante de novas tecnologias acompanha previsões de desastres ambientais e máximas prontas de como o ser humano consegue destruir o planeta a cada passo adiante. Embora durante anos a radiação tenha sido a vilã da vez (explicando a origem de superpoderes até a criação de monstros como Godzilla) atualmente o medo dos transgênicos e clones tem colocado a genética como a grande caixa de pandora humana. Não é à toa quando, após receber críticas de que seu livro Jurassic Park estava muito infantil, Michael Crichton tentou deixa-lo com uma perspectiva mais adulta ele iniciou fazendo previsões terríveis sobre o futuro da engenharia genética colocando-o no mesmo degrau de ameaça global que a energia nuclear. O que aconteceria se começássemos a clonar animais extintos? A engenharia genética traria dinossauros de volta a vida?

Não foi, no entanto, a engenharia genética, mas a tecnologia dos cinemas que trouxe os dinossauros a vida na película de 1993, o filme Jurassic Park de Steven Spielberg, levemente baseado (sim levemente, e se você leu o livro vai concordar comigo) no livro de Michael Chrichton. Como toda criança do início dos anos 90 eu assisti Jurassic Park nos cinemas e fui contaminado pela dinomania da época. No natal daquele ano eu ganharia o livro de Chrichton da minha mãe e devoraria em quatro dias. Obviamente que li o livro pela perspectiva de uma criança de 11 anos, vibrando com as cenas de Alan Grant e Muldoon e entendendo muito pouco o papel de Ian Malcolm no livro (também me surpreendi que Hammond, o avozinho do filme, morria, enquanto o advogado Gennaro ficava vivo. Naquela época eu não havia entendido que não se tratava de uma novelização do filme, mas sim uma história muito diferente). Assim, quando ganhei a edição comemorativa do livro Jurassic Park da minha noiva no natal de 2015 me senti obrigado a ler novamente a história e dessa vez ela se tornou muito, muito mais surpreendente.

Minhas duas edições de Jurassic Park, ambas presentes de natal, a primeira a esquerda de 1993, que ganhei de minha mãe e a segunda de 2015 que ganhei de minha noiva.


Mais do que uma história sobre dinossauros atacando pessoas, Jurassic Park é sobre uma série de questionamentos de cunho filosóficos a respeito da ciência e da visão de mundo que ela ajuda a mudar. O livro abre com um tom de espanto e alerta a respeito de como a engenharia genética estaria sendo um passo decisivo e provavelmente errado do progresso humano, os diversos casos (reais e imaginários) descritos no capitulo “O Incidente InGen” preparam o terreno para um cenário semelhante ao da época da Guerra Fria e da iminência de uma guerra nuclear, trocando os governos pelas empresas que detém a tecnologia e operam e um mundo de livre mercado sem regras sobe a complacência de governos de terceiro mundo desesperados por parecerem desenvolvidos. Não apenas o parque é desenvolvido na Costa Rica, mas o caso do vírus do Chile também é exemplo disso. A ficção cientifica tem esse caráter por tentar lidar com questões filosóficas, poucas são as histórias em que a ciência surge como uma opção boa (atualmente uma exceção seria Interestelar, onde sem a ciência a humanidade estaria condenada). Se a primeiro momento Jurassic Park se revela como uma clássica história de ficção cientifica onde os frutos da ciência são o grande mal, mais a frente vemos que a própria ciência teria alertado para o erro que estaria sendo cometido no parque através da matemática do caos e do argumento Malcolm, baseado no desenvolvimento de Curvas de Dragão (Dragon Curves, um tipo de semi-fractal). O próprio livro é organizado de modo que o leitor possa acompanhar o desenvolvimento das curvas dragão junto com a história. Cada conjunto de capítulos que marca o próximo ponto é assinalado pelo próximo passo do desenvolvimento da curva de dragão. Ao final o próprio Malcolm condena os cientistas por não pensarem nas consequências e assinala que o tempo da ciência passou, ela deveria ser esquecida e algo novo deveria surgir em seu lugar.

Evolução da Curva de Dragão. Iniciando-se com duas curvas em ângulos de 90º que se duplicam a cada interação, em uma giro de 45º. Fonte: Wikipedia.

Para muitos que leram o livro, Malcolm pode surgir como o paladino que carrega o estandarte da ciência maligna, principalmente diante do nosso próprio “parque” onde os transgênicos figuram como centro das discussões a respeito de engenharia genética atual. Organismos com alterações no DNA que consistem na inserção de genes de organismos diferentes (Mattei 2000), visando que um organismo passe a ter características do doador dos genes, tornando-os menos suscetíveis as doenças ou verdadeiros soldados na luta contra pragas. Embora a engenharia genética tenha sim revelado avanços benéficos em diversos campos, um exemplo, os Aedes aegyptis geneticamente alterados que causam a morte das larvas antes de se tornarem adultas, como a maioria das novas tecnologias colocadas à disposição no mercado, atraem olhares de reprovação e certa suspeita.

Dando uma previsão acertada do cenário do mundo real que envolve essa nova tecnologia, e com isso consagrando-se como um bom livro de ficção cientifica, Jurassic Park aborda dois problemas do uso de engenharia genética: as consequências biológicas da inserção de genes em organismos, assim como o milho da Monsanto, os dinossauros do Jurassic Park são transgênicos; e a questão da patente em cima de organismos que passariam a pertencer as grandes corporações. Enquanto o primeiro é o mais alardeado e usado como o vilão, embora a maioria das pesquisas discordem sobre os benefícios e malefícios dos transgênicos (Mattei, 2000; Lacey, 2006; Guivant, 2006; AAAS, 2012) e a própria OMS tenha pronunciado que os resultados são inconclusivos em relação aos  efeitos negativos dos transgênicos na saúde, envolvendo a biopirataria e a patente de organismos. Obviamente, entre os dois problemas, as pessoas temem mais as possíveis mutações que podem surgir da transgenia do que as consequências econômicas disso, talvez porque executivos trocando patentes não parece ser um medo muito preocupante por sabermos que são pessoas lidando com dinheiro, algo material e humano, enquanto cientistas estão lidando com a “obra divina”, o “perfeito e equilibrado mundo natural”.

A nova ciência sempre surge como uma vilã, uma obra blasfema, a ciência antiga ou habitual é vista como algo que sempre esteve ali, mas nos esquecemos que um dia ela foi revolucionária e nas palavras de Neil deGrasse Tisson “um iPhone poderia trazer a lei da caça às bruxas de volta alguns anos atrás”. No fim todos os frutos das ações humanas são guardados na caixa do “ruim”, do “não natural”, do que viola a “ordem divina” das coisas, mesmo que atualmente tenhamos trocado o termo divino pelos termos natural ou orgânico. A mais de 400 anos depois de Galileu ter derrubado o primeiro pilar que sustentava o trono da humanidade e 200 anos de Darwin e Wallace terem derrubado o segundo, nós ainda corremos para escorar sua queda com argumentos que nos coloca a parte (e acima) do restante do mundo natural.

Antes nos víamos como os senhores do mundo, hoje nos vemos como seus guardiões, com a obrigação de manter o status quo. Nos horrorizamos com o aquecimento global, e esquecemos dos dados geológicos e paleontológicos mostrando as inúmeras mudanças climáticas que o planeta enfrentou. Nos flagelamos pela inserção de espécies invasoras de caranguejos através da água de lastro de navios e ensinamos nas escolas que algumas plantas se utilizam de animais para dispersarem suas sementes. Ensinamos que a evolução é casual e oportunista, que sem a extinção do final do Cretáceo os mamíferos não teriam chance e provavelmente não estaríamos aqui hoje, mas tentamos a toda maneira frear qualquer possibilidade de extinção atual. Abraçamos a hipótese de Gaia, apesar de não conseguirmos ver esse organismo regulador da vida, e a elevamos ao status de teoria, mas nos esquecemos de que é provável que a hipótese correta seja a de Medeia, a vida conspirando contra a vida (Ward, 2009), sustentada pelas extinções globais causadas pelas mudanças provocadas pelos seres-vivos. Construímos terrários e aquários e nos esforçamos para simular ambientes estáveis neles, então olhamos para o mundo exterior e queremos fazer o mesmo, nos deslumbrando com um equilíbrio perfeito. Infelizmente a dita perfeição e equilíbrio do mundo natural nos impedem de ver que, desde sempre, os organismos estão preocupados em garantir sua sobrevivência e se para isso terão que alterar o ambiente em que vivem e causar a extinção de outros organismos, que seja.

Em tempos de aquecimento global, mais do que nunca se culpou cada ação humana perante os impactos causados nos ecossistemas. A cada foto de rios transbordando de lixo pessoas imploram por um meteoro que extermine a humanidade (esquecendo-se que um evento dessa magnitude vai causar uma destruição em escala muito maior que qualquer coisa já produzida pelo ser humano). Entre essas atribuições de culpa, uma das preferidas é apontar como o ser humano está deslocado do restante do planeta, olhamos para pilhas de lixo, esgotos e animais atropelados em estradas e lançamos: somente o ser humano para fazer algo assim. Essa visão nasceu de um pensamento mais antigo que antecede a ciência, um pensamento que encaixava o mundo natural (partindo do pressuposto que havia um “mundo sobrenatural”) em um ciclo de perfeição em que cada organismo sabia seu papel e lugar e contribuía de modo sábio para o desenrolar de tudo. Ainda temos essa visão quando explicamos a “importância das minhocas para o solo”, como se anelídeos fossem empregados de Gaia felizes em manter um solo aerado e macio para que as plantas pudessem crescer e alimentar os herbívoros. Infelizmente, tantos os anelídeos quanto as plantas e os herbívoros não pensam de modo altruísta assim e se as minhocas pudessem afogar as plantas e os herbívoros em um gigantesco solo para garantir sua sobrevivência a curto prazo elas o fariam, mesmo que isso significasse sua extinção a longo prazo.

Devo discordar totalmente de Malcolm (e seus fãs) e dizer que no que tange a ciência, sua suposta decadência e impactos, nesse ponto Chrichton conseguiu deixar o personagem com argumentos controversos. Vejamos se consigo deixar claro o equivoco. Malcolm sempre deixou explicito que o parque, do modo que os idealizadores o pensaram, fracassaria. Eles estavam lidando com organismos vivos e os modelos matemáticos previam o efeito Malcolm em algum momento (um evento repentino que desencadearia o final do sistema inicial). Isso porque conforme se rotaciona a curva de dragão e adicionam-se novas interações um novo padrão vai surgindo e encobrindo o padrão inicial, responsável pelas modificações e que agora não está mais visível, porém, ainda atuante. No parque, esse problema era o DNA de anfíbio (primeira interação), escolhido pelo sistema auto-suficiente (segunda interação), que habilitava alguns dinossauros a se reproduzirem (terceira interação), entre eles o Velociraptors, dinossauros que apresentavam um alto coeficiente de intelecto (quarta interação), cujo comportamento, bem como de outros dinossauros, era imprevisível, por não serem realmente dinossauros, conforme Wu afirma a Hammond em sua discussão sobre a versão 4.4 dos dinos (quinta interação). Quando o sistema de computadores que exigia o mínimo possível de controle humano para qualquer coisa, inclusive a rede elétrica, caiu e foi reiniciado, ninguém se preocupou em verificar a rede suplementar de energia, o que levou a uma segunda queda  e por fim a fuga dos Velociraptors (sexta interação) e os eventos finais entre eles o inicio do equilíbrio entre do ecossistema da ilha e os eventos finais do parque (sétima interação).

Malcolm usou isso como um exemplo de que as ações humanas levavam ao desastre, mas ao mesmo tempo, diante do argumento de Hammond que eles conseguiram evitar que os dinossauros destruíssem o mundo, ele afirma que as ações humanas são irrelevantes para a história da Terra e que desde antes do surgimento do homem, seres vivos estariam se destruindo e destruindo o ambiente, conforme ele usa como exemplo o evento de Grande Oxidação.

Não por acaso o Grande Evento de Oxidação do Arqueano é considerado o maior evento de poluição da história geológica da Terra (Goldblatt et al., 2006). A formação do supercontinente Kernoland permitiu que surgissem mares rasos colocando os recém-chegados organismos fotossintetizantes aeróbicos em contato com uma grande quantidade de luz solar. O aumento repentino da fotossíntese no planeta, levou a uma introdução de uma grande concentração de O2 na atmosfera (até então sem esse elemento em sua composição, o oxigênio não existia de modo livre no planeta), resultando na mudança de concentração dos gases da atmosfera e consequentemente na extinção dos organismos anaeróbicos, para os quais o oxigênio é um veneno.

O supercontinente Kenorland: a presença do supercontinente permitiu o surgimento de mares rasos e propiciou que organismos fotossintetizantes recebessem uma maior quantidade de energia solar, aumento as taxas de fotossinteze e a liberação de O2 livre na atmosfera causando o Grande Evento de Oxidação e a extinção da grande maioria dos organismos anaeróbios (imagem retirada de: http://someinterestingfacts.net).

Malcolm condena o uso da ciência, chamando-a de um artefato ultrapassado da espécie humana, ao mesmo tempo diz que as ações humanas pouco importam para o planeta. Nesse ponto, em seu leito de morte, Malcolm não parece se decidir, e talvez Chrichton também não, se os avanços científicos e seus impactos não são mais preocupantes ou se a ciência deveria ser abandonada por estar servindo como um instrumento de destruição. Talvez Malcolm só estivesse irritado ao perceber que, apesar da previsão corretíssima do efeito Malcolm, o parque poderia sim existir, e trazer dinossauros de volta a vida não implica em nenhum crime moral ou ético, uma vez que se trata de uma ação humana, tão natural quanto a poluição causada pelas bactérias do Arqueano. Talvez sua fala final “ não importa, as coisas são diferentes do outro lado”, mostra o ponto em que o paradigma foi rompido e um novo começou a surgir, onde as ações humanas não são separadas na caixa do artificial ou não-natural, mas como parte da dança que tem conduzido a evolução dos seres vivos no planeta a mais de 3,8 bilhões de anos.

Referências
 American association for the advancement of science. Statement by the AAAS Board of Directors On Labeling of Genetically Modified Foods. 2012. http://www.aaas.org/sites/default/files/AAAS_GM_statement.pdf. [Acessado em 15 de janeiro de 2016].

Chrichton, M. Jurassic Park. Editora Nova Cultural. 1991.

Chrichton, M. Jurassic Park. Editora Aleph. 2015

Goldblat, C.; Lenton, T. M.; Watson, A. Bistability of atmospheric oxygen and the
Great Oxidation. Nature. 443(12): 683-686, 2006.

Guivant, J. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambiente & Sociedade – Vol. IX nº. 1, 2006.

Hugh Lacey. A Controversia Sobre Os Transgênicos: Questões Científicos E Éticos. A Controversia Sobre Os Transgênicos: Questões Científicos E Éticos. 2006. http://works.swarthmore.edu/fac-philosophy/192/. [Acessado em 15 de janeiro de 2016].

Mattei L. Produtos transgênicos: problemas e incertezas para a segurança alimentar. Revista Economia Ensaios. 15(1):2000.

Peter Ward. The Medea Hypothesis: Is Life on Earth Ultimately Self-Destructive? Princeton University Press. 2009.

World Health Organization. Food safety: 20 questions on genetically modified foods. http://www.who.int/foodsafety/areas_work/food-technology/faq-genetically-modified-food/en/. [acessado em 15 de janeiro de 2016].