quarta-feira, 22 de junho de 2016

Eu vejo um gato preto (ou uma navalha enferrujada contra o gato de Schrödinger)



Em 1999 o filme Matrix fez história no cinema ao trazer incríveis efeitos especiais aliados a uma boa ficção cientifica dando respiro a um gênero cansado. Para os que desconhecem a história (pro Netflix já!!) Matrix conta como o mundo em que vivemos é na verdade uma simulação de computador gerada pelas máquinas, que utilizam a energia metabólica humana para gerar energia para as máquinas. Contra isso, um grupo de humanos que conseguiu se desligar dessa simulação retorna a ela para lutar pela liberdade. Brincando com lendas urbanas, sonhos e outros deslizes de percepção, Matrix explica o fenômeno do Déjà Vu como uma alteração repentina da matrix, como se a realidade retornasse um pouquinho devido a mudança. O protagonista Neo (Keanu Reeves) vivencia isso vendo um gato preto passar duas vezes na sua frente.

Matrix falha em diversos pontos de suas explicações científicas ou representações dos fenômenos e o caso do Déjà Vu é um deles, não se tratando de um fenômeno sensorial, mas sim mnemônico. Cerca de 96% dos indivíduos já passaram ou vão passar pela sensação do Déjà Vu (Brown, 2004), o que significa uma alta chance de que o leitor desse texto já o tenha experimentado. Trata-se de uma sensação de familiaridade ou de já ter vivido determinada situação (Ratliff, 2006; Illman et al., 2012). Por ser um fenômeno tão recorrente e de certo modo curioso, pessoas tendem a ser perguntar por que passam por essa experiência, o que se traduz como um campo de pesquisa científica, mas também uma oportunidade para os charlatões.

Tem pipocado pela internet uma série de páginas ligando o Déjà Vu com múltiplos universos, como se experimentar essa sensação fosse "entrar em frequência com outro eu em outro universo". As postagens seguem a cartilha já explicada pelo ótimo texto de Jessica Nunes no Universo Racionalista (http://www.universoracionalista.org/pseudofisicos-os-novos-altos-sacerdotes/). Temos o físico/futurólogo/escritor de ciência fazendo o papel do sacerdote da física, o físico ganhador do Nobel servindo como lastro de autoridade e um monte de más interpretações e achismos sobre o que realmente é ciência e, claro, a abusada física quântica. Se em um de seus ensaios Gould comparou o uso da teoria da evolução pelos eugenistas como ter sua filha acorrentada em um porão de um abusador, a pobre física quântica parece ser a garota que “está pedindo” devido como se apresenta. Basicamente qualquer um que queira dar alguma validade a suas ideias coloca a palavra quântico na frente, temos então a cura quântica, psicologia quântica etc.

O termo quântico deriva do quantum e está ligado com a quantidade que determinada grandeza física pode apresentar, no caso a menor quantidade de luz que pode ser absorvida ou emitida em um processo (Illingworth, 1994). Planck, quem formulou toda a base desse campo, determinou que toda a radiação eletromagnética é emitida em pulsos. Logo um quantum (um pulso) equivalia a um fóton de luz. Em 1926 com a formulação da dualidade onda/partícula por Louis de Broglie e o princípio da incerteza de Heisenberg fundamentou-se o campo da física quântica (Pessoa Jr., 2011). O princípio da incerteza pode ser grosseiramente resumido como sendo impossível saber simultaneamente a velocidade e a posição de um campo eletromagnético (por exemplo, um fóton). Ao se detectar este fóton em determinada posição, colapsa a função de onda para as outras posições. Até esse momento, no entanto, o fóton poderia existir em qualquer posição.


Figura 1: Onda estacionária de Broglie. Os ventres são pontos com maior probabilidade de se encontrar a partícula. Os nós tem probabilidade zero. (fonte da imagem: Okuno et al. Física para Ciências Biológicas e Biomédicas).
Figura 2: A onda estacionáriia de Broglie gera uma função de onda  em que os ventres indicam as posições em que podem ser encontrado o elétron.  Quando o elétron é detectado em A, a função de onda instantaneamente colapsa de modo que seja zero em B. (fonte da imagem: http://www.universoracionalista.org/charlatanismo-quantico).
Essa explicação passa longe de ser elegante, uma vez que a informação deveria viajar mais rápido que a luz para causar o colapso da função de onda. Einstein, por exemplo, chamava a isso de força sobrenatural a distância. Na física quântica é conhecida como a interpretação de Copenhague e ilustrado pelo experimento mental do gato de Schrödinger (Bromberg, 2011). Everett (1957) foi quem eliminou a necessidade do colapso da função de onda ao propor que, após uma medição qualquer, as outras probabilidades para esse fóton continuavam existindo em outros universos que se desdobravam. Veja bem, para um fóton, ou outra partícula como um elétron.


Figura 1: O experimento do gato de Schrödinger. Um gato seria colocado em uma caixa fechada onde haveria um elemento radioativo pequeno o suficiente para sofrer ou não um decaimento radioativo a qualquer momento. Se isso acontecesse um dispositivo acionaria um martelo que romperia o frasco de cianureto. Portanto, até que o observador abrisse a caixa e verificasse a condição do gato, o animal estaria vivo e morto. Porém, a partir do momento que caixa fosse aberta ele deveria estar vivo ou morto. (fonte da imagem: Wikipedia).

E essas são as duas ideias centrais da física quântica e também as duas usadas superficialmente para justificar as crenças dos místicos da nova era (Pessoa Jr., 2011). Enquanto o princípio da incerteza é abraçado como a explicação por trás do “querer é poder” do Segredo, os múltiplos universos são usados para se explicar de tudo, do plano espiritual a vidas passadas, e agora o Déjà Vu. É o carimbo da autoridade científica que os crédulos precisam para silenciar os céticos que questionam a suas crenças. 

Esqueça que as duas são antagônicas, o desconhecimento a respeito da física quântica permite que as pessoas juntem as duas em um universo onde as funções colapsam para uma probabilidade, mas outras continuam existindo. Curiosamente, pessoas que compartilham supostas provas cientificas para suas crenças místicas são as primeiras a fugir da discussão, após provado que suas fontes estão erradas, com frases como: “mas nem tudo precisa ser provado para existir”. 

Por que então a necessidade de ter um carimbo da ciência validando o que você acredita?

Realmente, a ausência de evidências não significa evidência de ausências. Porém, sem provas, nada de ciência. Por isso a ideia de múltiplos universos não é sequer uma hipótese, quanto mais uma teoria científica, sendo mais um palpite com base em extrapolação e não possível de ser testado (Steinhardt, 2014). Segundo Ellis (2011) deveríamos nos perguntar se realmente precisamos de múltiplos universos para explicar a existência de um e se a resposta for afirmativa, isso não significaria que todos seriam, na verdade, apenas um único universo?

Quanto ao Déjà Vu, temos algumas explicações mais parcimoniosas (e, portanto, com grandes chances de serem verdadeiras, aplicando-se a navalha de Occam), no caso uma anomalia de memória que nos permite sentir como se estivéssemos re-experimentando uma cena (Brown, 2008). Um estudo de 2012 liga o Déjà Vu com o reconhecimento de similaridades entre cenas experimentados pelo nosso cérebro. Basicamente, ao experimentar uma cena que compartilhe elementos parecidos com o que ele já experimentou, ele associa as duas coisas (Brown et al., 2012). O fato de certas drogas, como a amantadina e a fenilpropalonamina, aumentarem as experiências de Déjà Vu (Taiminen & Jääskeläinen, 2001) bem como certas doenças como a epilepsia (Labate et al 2012) são fortes evidencias a uma causa neurofisiológica. Além disso conforme Pessoa Jr. (2008) deixou claro em seu ensaio, a física quântica funciona muito bem para universos micros, mas muitos de seus efeitos são apagados ou diluídos no gigantesco agrupamento de átomos que forma nosso universo macro, o resultado é o mesmo de olharmos um mosaico a distância, o que enxergamos é a grande pintura formada pelas menores partes, totalmente traduzível e explicável pela física newtoniana. 

Assim, embora possamos explicar o funcionamento de uma bicicleta, de uma moto ou do teorema de Bernoulli pela física quântica, temos um atalho funcional para explicar todas essas coisas na mecânica newtoniana. Seria diferente com nossa consciência que, parafraseando Darwin, trata-se de uma excreção de nosso cérebro?

Provavelmente não. Mayr (2009) considera a consciência humana como resultado do processo de seleção natural, tendo evoluído a partir da consciência dos animais. Tanto os processos conscientes quanto inconscientes de nosso sistema nervoso dependem da transmissão de impulsos nervosos, explicada pela física newtoniana como a diferença de potencial da membrana celular (Stevens & Lowe, 2016), portanto, dependentes da estrutura celular dos neurônios e da química cerebral que geram e controlam esses impulsos. Logo tanto os processos neurológicos quanto suas patologias e falhas são explicados pela física newtoniana e em primeira instância pela neurobiologia e fisiologia.
Não há necessidade, portanto, de utilizar algo ainda não comprovado pela física quântica como múltiplos universos para explicar algo bem fundamentado e estudado pela neurobiologia e fisiologia como o fenômeno do Déjà Vu. Os múltiplos mundos de Everett surgiram como um bom uso da navalha de Occam ao conseguir uma explicação que eliminasse a necessidade da força sobrenatural a distância de Einstein. Querer usar essa hipótese para explicar algo fundamentado na neurobiologia, como o Déjà Vu, é um corte grosseiro demais para uma navalha afiada. 
É melhor matar o gato abrindo a caixa.

Referencias Bibliográficas


Bromberg, J. L. 2011. Problemas de pesquisa na história da Mecânica Quântica. 17-33. In: Freire Jr, Olival, Osvaldo Pessoa Jr, and Joan Lisa Bromberg. Teoria quântica: estudos históricos e implicações culturais. Livraria da Física, São Paulo, 2011, 456 p.
Brown, A. S. 2004. The déjà vu illusion. Current Directions in Psychological Science 13: 256–259.
Brown, A. S. 2008. The déjà vu experience. Psychology Press.
Cleary; Brown, A. S.; Sawyer, B. D.; Nomi, J. S.; Ajoku, A. C.; Ryals, A. J. 2012. Familiarity from the configuration of objects in 3-dimensional space and its relation to déjà vu: A virtual reality investigation. Consciousness and Cognition 21(2): 969–975.
Ellis, G. F. R. 2011. O Multiverso realmente existe? Scientific American Brasil. 112:38-43.
Everett H. 1956. Theory of the Universal Wavefunction. Thesis.  Princeton University, (1956, 1973), pp 1–140.
Freire Jr, Olival, Osvaldo Pessoa Jr, and Joan Lisa Bromberg. "Teoria quântica: estudos históricos e implicações culturais." (2011).
Illingworth, V. 1994. The facts on file dictionary of astronomy 3ed. New York: Facts on File. p. 361.
Illman, N. A.; Butler, C. R.; Souchay, C.; Moulin, C. J. A. 2012. Déjà Experiences in Temporal Lobe Epilepsy. Epilepsy Research and Treatment 2012: 1–15.
Labate, A.; Cerasa, A.; Mumoli, L.; Ferlazzo, E.; Aguglia, U.; Quattrone, A.; Gambardella, A. 2015. Neuro-anatomical differences among epileptic and non-epileptic déjà-vu. Cortex 64: 1–7.
Mayr, Ernst. 2009. O que é a evolução. Rocco, 342 p.
Pessoa Jr., O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. 281-302. In: Freire Jr, Olival, Osvaldo Pessoa Jr, and Joan Lisa Bromberg. Teoria quântica: estudos históricos e implicações culturais. Livraria da Física, São Paulo, 2011, 456 p.
Ratliff, E. 2006. Déjà Vu, Again and Again". The New York Times.
Steinhardt, P. 2006. Theories of Anything. Edge. 2014 : WHAT SCIENTIFIC IDEA IS READY FOR RETIREMENT? < https://www.edge.org/response-detail/25405> Data de acesso: 10/06/2016.
Stevens, A.; Lowe, J. 2016. Histologia humana. 2ª ed. Manole. 416 p.
Taiminen, T.; Jääskeläinen, S. 2001. Intense and recurrent déjà vu experiences related to amantadine and phenylpropanolamine in a healthy male". Journal of Clinical Neuroscience 8(5): 460–462.

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