quinta-feira, 12 de março de 2015

A Oitava Tartaruga



Um mito sobre a evolução no qual as pessoas ainda acreditam, apesar dos esforços de cientistas ilustres como Stephen J. Gould desmentirem, é a ideia de que a evolução é uma escada para o progresso no qual os mamíferos, e dentro desses o homem, ocupam o lugar mais alto como os seres mais evoluídos do planeta e quando olhamos para baixo vemos nossos primos menos evoluídos tais quais eles sempre foram. Crocodilos sempre foram rastejantes em terra e aquáticos, lagartos sempre arrastaram suas barrigas e caudas, tartarugas sempre foram lerdas e pesadas, anfíbios sempre foram sapos, frios e normalmente vivendo em lugares sujos.
Essas ideias são facilmente derrubadas ao vermos o registro fóssil e encontrar tamanha diversidade dentro desses grupos, sendo a única conclusão possível a de que as espécies atuais são tão evoluídas quanto qualquer outra espécie de mamífero, inclusive nós, e que seus ramos ocupam a mesma altura dentro da árvore da evolução. Porém é possível que o ramo dos cetáceos esteja um pouco mais alto que o nosso pois esses mamíferos, após um período em terra, retornaram a vida nas águas se tornando um pouco mais derivados do que nossa linhagem de grandes primatas.
Ainda assim os mitos persistem, em parte porque as definições que popularmente são dadas a esses animais partem de uma comparação direta conosco: rastejante, lerdo, frio são antropomorfizações desses animais, e embora evitadas pela ciência atual vez ou outra ainda aparecem, tendo sido empregadas por diversos naturalistas como Owen, nas suas descrições e explicações. O estigma de répteis burros e lerdos que viviam em pântanos, que ainda cerca os dinossauros, vem dessas primeiras interpretações e comparações com lagartos e crocodilos atuais. Ainda hoje, uma caminhada num zoológico lotado permite presenciar uma série de comentários sobre quais bichos são feios, quais são bonitos, quais são burros... todos, claro, tendo o ser humano como medida padrão.
Outro motivo desta visão encontra-se na pratica antiga da humanidade para explicar o mundo atribuindo características humanas a objetos inanimados, a chamada Falácia Patética (Abram & Harpham, 2011). Dentro dos mitos das antigas e atuais religiões ela tem sido uma constante, principalmente por atribuirmos aos animais um significado no mundo mais primordial e quase sempre para sustentar nossa própria existência.
Não é de se admirar que a tartaruga tenha sido escolhida para carregar o mundo nas costas ou pelo menos os elefantes que o sustentavam (posso ver essa conversa se desenrolando em volta de uma fogueira a medida que a parcimônia é abandonada em favor dos elementos mais claros e diários: mas o que sustenta o mundo? Quatro elefantes -lógico, elefantes são grandes, mas não grandes o suficiente para sozinhos sustentarem o mundo- mas os elefantes onde estão? Em cima de uma tartaruga, um animal resistente e grande de costas largas formando uma superfície rígida que pode sustentar os elefantes. Mas e a tartaruga? Oras, a tartaruga está nadando, como faz nos oceanos, no mar do infinito).
Nem sempre a tartaruga é escolhida, em outro exercício imaginativo a mitologia árabe traz Bahamut, o peixe, sustentando em suas costas o touro e em cima do touro uma montanha, na montanha existe um anjo que segura as sete terras. Uma versão alternativa traz que nas costas do touro existem rochas que sustentam as água e nas águas está a Terra. A sequencia pode ter se complicado, mas alguns elementos se repetem, um animal aquatico sustentando outro ou outros fortes e grandes que por sua vez sustentam o mundo.
Mas peixes e touros não são o alvo dessa coluna e sim tartarugas. Em especial porque eu precisava de um incentivo a voltar a escrever no blog e ele veio na triste noticia do falecimento de uma das mentes mais brilhantes e afiadas que o Homo sapiens já produziu. Hoje faleceu Terry Pratchett, que além de um escritor fantástico, era um naturalista amador com especial interesse em orangotangos (Ooook?!) e plantas carnívoras. Sua série de livros mais famosa, Discworld, brinca justamente com o mito da tartaruga que sustenta os elefantes que sustentam o mundo em forma de disco, um mundo que, nas palavras que abrem um de seus livros, “foi criado por deuses com mais criatividade do que senso prático”. Suas histórias satirizam diversas situações da nossa sociedade, mas também brincam com a impossibilidade de tal mundo existir e da necessidade de forças mágicas e intervenção divina para que continue existindo ao ponto que seja impossível duvidar da sua existência.
Voltando as tartarugas, grande A’tuin, que na mitologia do Discworld sustenta os elefantes, aparece pouco nas histórias, mas sua presença é tão marcante e sua existência tão determinante na estrutura das histórias que ela é de longe o personagem mais conhecido – até mesmo por quem nunca leu os livros. Essa fama é tão grande que em 1995, Köhler, um paleontólogo do Departamento de Geologia da Universidade de Otago na Nova Zelândia, batizou uma tartaruga fóssil com o nome de Psephophorus terrypratchetti.
Psephophorus terrypratchetti é uma tartaruga da família Dermochelyidae, cuja principal característica é não possuir uma carapaça ou plastrão ósseos. O “casco” das tartarugas, bem como dos Jabotis e Cágados, em geral, é formado por dois conjuntos ósseos separados (Figura 1). A carapaça, que protege o dorso e as laterais, possui duas camadas, uma delas de placas ósseas e uma segunda que cobre essas placas (Figura 1 A), mais fina chamada de escudos e formandos por fibras de proteínas queratinizadas (Romer, 1997). As placas ósseas da primeira camada são fundidas as vértebras e costelas (Pough et al., 1993) (Figura 2), tornando impossível para o animal sair de seu casco como os desenhos animados gostam de mostrar e tornando verdadeira a maldição de Zeus sobre a ninfa Chelone que se atrasou para o casamento do líder dos deuses e foi condenada a carregar sua casa sobre suas costas. O plastrão (Figura 1 B)é formado por placas ósseas ligadas lateralmente a carapaça (Romer, 1997).

Figura 1: Esquema representando as partes da carapaça e plastrão dos Testudines. A) Carapaça (dorsal); B Plastrão (ventral); C) Lateral. Linhas tracejadas mostram os limites dos escudos ósseos. (Retirado de Romer, 1997)

Figura 2: Vista ventral de um esqueleto de Chelydra serpentina. Note as vértebras e costelas fundidas a carapaça (Fonte: Wikipedia).

O que difere a carapaça das Dermochelyidae do restante dos Testudinos? As dermoquelides são popularmente chamadas de Tartarugas de Costas de Couro, e uma espécie muito conhecida daqueles que visitaram qualquer base do Projeto Tamar é a Dermochelys coriacea que pode alcançar seus 2,5 metros de comprimento. O nome Costas de Couro não é sem fundamento, ao contrário das outras tartarugas, as placas ósseas são incrivelmente reduzidas e não se fundem na caparaça ou mesmo com as vértebras e costelas, ao invés disso, uma grande quantidade de ossículos formam um mosaico em uma pele espessa e coriácea, livre das costelas e vértebras (Figura 3). Esse padrão se une com seu equivalente ventral formado por cinco cristas longitudinais (Romer, 1997). Esse arranjo é motivos de longos debates sobre a evolução do arranjo carapaça e plastrão. Alguns estudos tentam colocar a carapaça das dermoquelide como um modelo para os quelônios basais do qual teria se derivado a carapaça e plastrão atuais (Baur, 1889; Dollo, 1901; Versluys, 1914; Hay, 1922), enquanto poucos consideram as costas de couro como um estado mais derivado dentro da evolução das Tartarugas (Zangerl, 1939). De certa forma, a ideia de que uma espécie do gênero Psephophorus, sendo a Psephophorus terrypratchetti a última depois de outras sete espécies fósseis (Köhler, 1995), fosse um ancestral direito das Dermochelys atuais foi predominante até a análise filogenética de Wood et al. (1996) mostrar que o gênero Psephophorus estava relativamente distante de Dermochelys.


Figura 3: Vista externa do mosaico de óssiculos na região dorsal de Psephophorus terrypratchetti.
O gênero, no entanto, após um tempo de vida relativamente longo surgindo no Eoceno (56 Ma) veio a desaparecer no Plioceno (2,56 Ma) sem deixar descendentes (Romer, 1997). Seus fósseis ocorrerem por quase todo o mundo tendo fósseis na Europa, América do Norte, África e Nova Zelândia (Köhrle), essa ultima região onde foi encontrada P. terrypratchetti. Se você chegou até aqui aprendendo algo mais sobre a evolução e morfologia das tartarugas já me sinto feliz, mas sei que alguns esperam uma lição maior de tudo isso, especialmente de um texto que começa falando sobre mitos e de como os utilizamos para explicar grandes episódios.
Pois bem, Köhler encontrou seis exemplares de P. terrypratchetti todos das mesma um unidade geológica, em concreções do rio Waihao acima de um arenito rico em fósseis de moluscos, o que evidencia águas com temperaturas quentes, Köhler admite uma temperatura entre 18° e 20° com base nos estudos de isótopos de oxigênio de Devereux (1967, 1968). Atualmente, as tartarugas do gênero Dermochelys não costumam se reunir em grupos exceto durante a estação de acasalamento que ocorre em águas com temperaturas de aproximadamente 20°. Köhl também concluiu, pelo tamanho das vértebras, que se tratavam de indivíduos adultos. Portanto, os fósseis de P. terrypratchetti da Nova Zelândia representam um estoque reprodutivo! Muitos desses animais, em semelhança a que ocorre com a Dermochelys devem ter dado suas ultimas forças para chegar até ali sendo vitimas da exaustão ou de predadores.
Peço desculpas pelo spoiler, mas o livro é cheio de passagens incríveis e a leitura ainda vai ser divertida para os que não conhecem. Em seu livro a Luz Fantástica, Pratchett coloca o mundo do Disco em uma rota de colisão com uma estrela vermelha que possuía oito luas quando Grande A’tuin, a tartaruga que carrega os elefantes que sustenta o mundo, passa a nadar em sua direção. Aparentemente o único que poderia evitar isso seria o azarado e inepto mago Rincewind, incapaz de fazer qualquer magia por guardar em sua mente os oitos feitiços mais poderosos do mundo. Após os problemas que se seguem na história e quando a Grande A’tuin está próxima demais da estrela e suas luas, Rincewind libera os feitiços fazendo com que as luas se quebrem e revelem oito pequenas tartarugas, cada uma com seus elefantes e mundos. No fim, Grande A’tuin estava indo para seu lugar reprodutivo.
O numero oito tem um grande impacto sobre as histórias de Pratchett que envolvem seus magos e o leitor mais atento e fã dos livros já deve ter antecipado o final desse texto. Vejo os paleontólogos que descobriram cada espécie do gênero Psephophorus como Rincewind e sua jornada junto a Grande A’tuin. Eles também precisaram viajar para longe de suas rotas normais, às vezes enfrentando o calor inclemente de uma estrela (amarela, não vermelha, pela classificação astronômica) e diversos obstáculos involuntários do dever para com suas ferramentas e conhecimento abrirem as rochas que revelaram cada uma das sete mais uma espécies de Psephophorus. A Oitava, claro, não poderia ser ninguém além da simbólica e significativa Psephophorus terrypratchetti.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMS, M.H.; HARPHAM, G.G. A Glossary of Literary Terms. Wadsworth, Cengage Learning. p. 269, (2011) [1971].

DEVEREUX, I. Oxygen isotope paleotemperature measurements on New Zealand Tertiary fossils. New Zealand journal of science and technology 10: 988-1011, 1967.

DEVEREUX, I. Oxygen isotope paleotemperatures from the Tertiary of New Zealand. Tuatara
16(1): 41-44, 1968.

DOLLO, L. Sur l’origine de la tortue luth (Dermochelys coriacea). Bull Soc. Roy. Sx. Med. Nat. Brussels. Pp. 1-26, 1901.

HAY, O. P. On the phylogeny of the shell of the Testudinata and the relationships of Dermochelys. > Morphol. 36: 421-445, 1922.

KOHLER, R. A new species of the fossil turtle Psephophorus (Order Testudines) from the Eocene of the South Island, New Zealand. Journal of the Royal Society of New Zealand. 25(3):371-384, 1995.

POUGH, F. H.; HEISER, J. B.; McFARLAND, W. N. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 754 p., 1993.

ROMER, A. S. Osteology of the reptiles. Reprint Edition. Malabar: Krieger Publishing Company, Berlin, 772, 1997.

VERSLUYS, J. Die mittlere und äussere Ohrsphäre der Lacertilia. Zool. Jahrb., Anat., 12: 160-406, 1898.

WOOD, R. C;, JOHNSON-GOVE, J.; GAFFNEY, E. S.; MALEY, K. F. Evolution and phylogeny of leatherback turtles (Dermochelyidae), with description of new fossil taxa. Chel. Conserv. Biol. 2: 266-286, 1996.

Um comentário: