sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Curvas de Medeia



Histórias inventadas sempre trazem lições ou visões da época em que foram escritas. Não por acaso, avanços científicos normalmente são alvo da suspeita dos leigos. Nesse ponto, as histórias de ficção científica traduzem esses medos e pavores, as vezes de modo exagerado e não realista, quase sempre buscando uma pergunta filosófica no campo da moral e ética: devemos fazer o que estamos fazendo com essa nova tecnologia? Devemos brincar de Deus dessa maneira?
Se a ciência não reconhece mais a alma então podemos brincar com corpos humanos e os trazer de volta a vida? Se a radiação causa mutações, pode ser usada para criar monstros? Androides sonham com ovelhas elétricas? É da nossa alçada brincar com o DNA e trazer organismos que já se extinguiram de volta a vida?

(Como o leitor já deve ter percebido, será um texto sobre Jurassic Park).

O medo diante de novas tecnologias acompanha previsões de desastres ambientais e máximas prontas de como o ser humano consegue destruir o planeta a cada passo adiante. Embora durante anos a radiação tenha sido a vilã da vez (explicando a origem de superpoderes até a criação de monstros como Godzilla) atualmente o medo dos transgênicos e clones tem colocado a genética como a grande caixa de pandora humana. Não é à toa quando, após receber críticas de que seu livro Jurassic Park estava muito infantil, Michael Crichton tentou deixa-lo com uma perspectiva mais adulta ele iniciou fazendo previsões terríveis sobre o futuro da engenharia genética colocando-o no mesmo degrau de ameaça global que a energia nuclear. O que aconteceria se começássemos a clonar animais extintos? A engenharia genética traria dinossauros de volta a vida?

Não foi, no entanto, a engenharia genética, mas a tecnologia dos cinemas que trouxe os dinossauros a vida na película de 1993, o filme Jurassic Park de Steven Spielberg, levemente baseado (sim levemente, e se você leu o livro vai concordar comigo) no livro de Michael Chrichton. Como toda criança do início dos anos 90 eu assisti Jurassic Park nos cinemas e fui contaminado pela dinomania da época. No natal daquele ano eu ganharia o livro de Chrichton da minha mãe e devoraria em quatro dias. Obviamente que li o livro pela perspectiva de uma criança de 11 anos, vibrando com as cenas de Alan Grant e Muldoon e entendendo muito pouco o papel de Ian Malcolm no livro (também me surpreendi que Hammond, o avozinho do filme, morria, enquanto o advogado Gennaro ficava vivo. Naquela época eu não havia entendido que não se tratava de uma novelização do filme, mas sim uma história muito diferente). Assim, quando ganhei a edição comemorativa do livro Jurassic Park da minha noiva no natal de 2015 me senti obrigado a ler novamente a história e dessa vez ela se tornou muito, muito mais surpreendente.

Minhas duas edições de Jurassic Park, ambas presentes de natal, a primeira a esquerda de 1993, que ganhei de minha mãe e a segunda de 2015 que ganhei de minha noiva.


Mais do que uma história sobre dinossauros atacando pessoas, Jurassic Park é sobre uma série de questionamentos de cunho filosóficos a respeito da ciência e da visão de mundo que ela ajuda a mudar. O livro abre com um tom de espanto e alerta a respeito de como a engenharia genética estaria sendo um passo decisivo e provavelmente errado do progresso humano, os diversos casos (reais e imaginários) descritos no capitulo “O Incidente InGen” preparam o terreno para um cenário semelhante ao da época da Guerra Fria e da iminência de uma guerra nuclear, trocando os governos pelas empresas que detém a tecnologia e operam e um mundo de livre mercado sem regras sobe a complacência de governos de terceiro mundo desesperados por parecerem desenvolvidos. Não apenas o parque é desenvolvido na Costa Rica, mas o caso do vírus do Chile também é exemplo disso. A ficção cientifica tem esse caráter por tentar lidar com questões filosóficas, poucas são as histórias em que a ciência surge como uma opção boa (atualmente uma exceção seria Interestelar, onde sem a ciência a humanidade estaria condenada). Se a primeiro momento Jurassic Park se revela como uma clássica história de ficção cientifica onde os frutos da ciência são o grande mal, mais a frente vemos que a própria ciência teria alertado para o erro que estaria sendo cometido no parque através da matemática do caos e do argumento Malcolm, baseado no desenvolvimento de Curvas de Dragão (Dragon Curves, um tipo de semi-fractal). O próprio livro é organizado de modo que o leitor possa acompanhar o desenvolvimento das curvas dragão junto com a história. Cada conjunto de capítulos que marca o próximo ponto é assinalado pelo próximo passo do desenvolvimento da curva de dragão. Ao final o próprio Malcolm condena os cientistas por não pensarem nas consequências e assinala que o tempo da ciência passou, ela deveria ser esquecida e algo novo deveria surgir em seu lugar.

Evolução da Curva de Dragão. Iniciando-se com duas curvas em ângulos de 90º que se duplicam a cada interação, em uma giro de 45º. Fonte: Wikipedia.

Para muitos que leram o livro, Malcolm pode surgir como o paladino que carrega o estandarte da ciência maligna, principalmente diante do nosso próprio “parque” onde os transgênicos figuram como centro das discussões a respeito de engenharia genética atual. Organismos com alterações no DNA que consistem na inserção de genes de organismos diferentes (Mattei 2000), visando que um organismo passe a ter características do doador dos genes, tornando-os menos suscetíveis as doenças ou verdadeiros soldados na luta contra pragas. Embora a engenharia genética tenha sim revelado avanços benéficos em diversos campos, um exemplo, os Aedes aegyptis geneticamente alterados que causam a morte das larvas antes de se tornarem adultas, como a maioria das novas tecnologias colocadas à disposição no mercado, atraem olhares de reprovação e certa suspeita.

Dando uma previsão acertada do cenário do mundo real que envolve essa nova tecnologia, e com isso consagrando-se como um bom livro de ficção cientifica, Jurassic Park aborda dois problemas do uso de engenharia genética: as consequências biológicas da inserção de genes em organismos, assim como o milho da Monsanto, os dinossauros do Jurassic Park são transgênicos; e a questão da patente em cima de organismos que passariam a pertencer as grandes corporações. Enquanto o primeiro é o mais alardeado e usado como o vilão, embora a maioria das pesquisas discordem sobre os benefícios e malefícios dos transgênicos (Mattei, 2000; Lacey, 2006; Guivant, 2006; AAAS, 2012) e a própria OMS tenha pronunciado que os resultados são inconclusivos em relação aos  efeitos negativos dos transgênicos na saúde, envolvendo a biopirataria e a patente de organismos. Obviamente, entre os dois problemas, as pessoas temem mais as possíveis mutações que podem surgir da transgenia do que as consequências econômicas disso, talvez porque executivos trocando patentes não parece ser um medo muito preocupante por sabermos que são pessoas lidando com dinheiro, algo material e humano, enquanto cientistas estão lidando com a “obra divina”, o “perfeito e equilibrado mundo natural”.

A nova ciência sempre surge como uma vilã, uma obra blasfema, a ciência antiga ou habitual é vista como algo que sempre esteve ali, mas nos esquecemos que um dia ela foi revolucionária e nas palavras de Neil deGrasse Tisson “um iPhone poderia trazer a lei da caça às bruxas de volta alguns anos atrás”. No fim todos os frutos das ações humanas são guardados na caixa do “ruim”, do “não natural”, do que viola a “ordem divina” das coisas, mesmo que atualmente tenhamos trocado o termo divino pelos termos natural ou orgânico. A mais de 400 anos depois de Galileu ter derrubado o primeiro pilar que sustentava o trono da humanidade e 200 anos de Darwin e Wallace terem derrubado o segundo, nós ainda corremos para escorar sua queda com argumentos que nos coloca a parte (e acima) do restante do mundo natural.

Antes nos víamos como os senhores do mundo, hoje nos vemos como seus guardiões, com a obrigação de manter o status quo. Nos horrorizamos com o aquecimento global, e esquecemos dos dados geológicos e paleontológicos mostrando as inúmeras mudanças climáticas que o planeta enfrentou. Nos flagelamos pela inserção de espécies invasoras de caranguejos através da água de lastro de navios e ensinamos nas escolas que algumas plantas se utilizam de animais para dispersarem suas sementes. Ensinamos que a evolução é casual e oportunista, que sem a extinção do final do Cretáceo os mamíferos não teriam chance e provavelmente não estaríamos aqui hoje, mas tentamos a toda maneira frear qualquer possibilidade de extinção atual. Abraçamos a hipótese de Gaia, apesar de não conseguirmos ver esse organismo regulador da vida, e a elevamos ao status de teoria, mas nos esquecemos de que é provável que a hipótese correta seja a de Medeia, a vida conspirando contra a vida (Ward, 2009), sustentada pelas extinções globais causadas pelas mudanças provocadas pelos seres-vivos. Construímos terrários e aquários e nos esforçamos para simular ambientes estáveis neles, então olhamos para o mundo exterior e queremos fazer o mesmo, nos deslumbrando com um equilíbrio perfeito. Infelizmente a dita perfeição e equilíbrio do mundo natural nos impedem de ver que, desde sempre, os organismos estão preocupados em garantir sua sobrevivência e se para isso terão que alterar o ambiente em que vivem e causar a extinção de outros organismos, que seja.

Em tempos de aquecimento global, mais do que nunca se culpou cada ação humana perante os impactos causados nos ecossistemas. A cada foto de rios transbordando de lixo pessoas imploram por um meteoro que extermine a humanidade (esquecendo-se que um evento dessa magnitude vai causar uma destruição em escala muito maior que qualquer coisa já produzida pelo ser humano). Entre essas atribuições de culpa, uma das preferidas é apontar como o ser humano está deslocado do restante do planeta, olhamos para pilhas de lixo, esgotos e animais atropelados em estradas e lançamos: somente o ser humano para fazer algo assim. Essa visão nasceu de um pensamento mais antigo que antecede a ciência, um pensamento que encaixava o mundo natural (partindo do pressuposto que havia um “mundo sobrenatural”) em um ciclo de perfeição em que cada organismo sabia seu papel e lugar e contribuía de modo sábio para o desenrolar de tudo. Ainda temos essa visão quando explicamos a “importância das minhocas para o solo”, como se anelídeos fossem empregados de Gaia felizes em manter um solo aerado e macio para que as plantas pudessem crescer e alimentar os herbívoros. Infelizmente, tantos os anelídeos quanto as plantas e os herbívoros não pensam de modo altruísta assim e se as minhocas pudessem afogar as plantas e os herbívoros em um gigantesco solo para garantir sua sobrevivência a curto prazo elas o fariam, mesmo que isso significasse sua extinção a longo prazo.

Devo discordar totalmente de Malcolm (e seus fãs) e dizer que no que tange a ciência, sua suposta decadência e impactos, nesse ponto Chrichton conseguiu deixar o personagem com argumentos controversos. Vejamos se consigo deixar claro o equivoco. Malcolm sempre deixou explicito que o parque, do modo que os idealizadores o pensaram, fracassaria. Eles estavam lidando com organismos vivos e os modelos matemáticos previam o efeito Malcolm em algum momento (um evento repentino que desencadearia o final do sistema inicial). Isso porque conforme se rotaciona a curva de dragão e adicionam-se novas interações um novo padrão vai surgindo e encobrindo o padrão inicial, responsável pelas modificações e que agora não está mais visível, porém, ainda atuante. No parque, esse problema era o DNA de anfíbio (primeira interação), escolhido pelo sistema auto-suficiente (segunda interação), que habilitava alguns dinossauros a se reproduzirem (terceira interação), entre eles o Velociraptors, dinossauros que apresentavam um alto coeficiente de intelecto (quarta interação), cujo comportamento, bem como de outros dinossauros, era imprevisível, por não serem realmente dinossauros, conforme Wu afirma a Hammond em sua discussão sobre a versão 4.4 dos dinos (quinta interação). Quando o sistema de computadores que exigia o mínimo possível de controle humano para qualquer coisa, inclusive a rede elétrica, caiu e foi reiniciado, ninguém se preocupou em verificar a rede suplementar de energia, o que levou a uma segunda queda  e por fim a fuga dos Velociraptors (sexta interação) e os eventos finais entre eles o inicio do equilíbrio entre do ecossistema da ilha e os eventos finais do parque (sétima interação).

Malcolm usou isso como um exemplo de que as ações humanas levavam ao desastre, mas ao mesmo tempo, diante do argumento de Hammond que eles conseguiram evitar que os dinossauros destruíssem o mundo, ele afirma que as ações humanas são irrelevantes para a história da Terra e que desde antes do surgimento do homem, seres vivos estariam se destruindo e destruindo o ambiente, conforme ele usa como exemplo o evento de Grande Oxidação.

Não por acaso o Grande Evento de Oxidação do Arqueano é considerado o maior evento de poluição da história geológica da Terra (Goldblatt et al., 2006). A formação do supercontinente Kernoland permitiu que surgissem mares rasos colocando os recém-chegados organismos fotossintetizantes aeróbicos em contato com uma grande quantidade de luz solar. O aumento repentino da fotossíntese no planeta, levou a uma introdução de uma grande concentração de O2 na atmosfera (até então sem esse elemento em sua composição, o oxigênio não existia de modo livre no planeta), resultando na mudança de concentração dos gases da atmosfera e consequentemente na extinção dos organismos anaeróbicos, para os quais o oxigênio é um veneno.

O supercontinente Kenorland: a presença do supercontinente permitiu o surgimento de mares rasos e propiciou que organismos fotossintetizantes recebessem uma maior quantidade de energia solar, aumento as taxas de fotossinteze e a liberação de O2 livre na atmosfera causando o Grande Evento de Oxidação e a extinção da grande maioria dos organismos anaeróbios (imagem retirada de: http://someinterestingfacts.net).

Malcolm condena o uso da ciência, chamando-a de um artefato ultrapassado da espécie humana, ao mesmo tempo diz que as ações humanas pouco importam para o planeta. Nesse ponto, em seu leito de morte, Malcolm não parece se decidir, e talvez Chrichton também não, se os avanços científicos e seus impactos não são mais preocupantes ou se a ciência deveria ser abandonada por estar servindo como um instrumento de destruição. Talvez Malcolm só estivesse irritado ao perceber que, apesar da previsão corretíssima do efeito Malcolm, o parque poderia sim existir, e trazer dinossauros de volta a vida não implica em nenhum crime moral ou ético, uma vez que se trata de uma ação humana, tão natural quanto a poluição causada pelas bactérias do Arqueano. Talvez sua fala final “ não importa, as coisas são diferentes do outro lado”, mostra o ponto em que o paradigma foi rompido e um novo começou a surgir, onde as ações humanas não são separadas na caixa do artificial ou não-natural, mas como parte da dança que tem conduzido a evolução dos seres vivos no planeta a mais de 3,8 bilhões de anos.

Referências
 American association for the advancement of science. Statement by the AAAS Board of Directors On Labeling of Genetically Modified Foods. 2012. http://www.aaas.org/sites/default/files/AAAS_GM_statement.pdf. [Acessado em 15 de janeiro de 2016].

Chrichton, M. Jurassic Park. Editora Nova Cultural. 1991.

Chrichton, M. Jurassic Park. Editora Aleph. 2015

Goldblat, C.; Lenton, T. M.; Watson, A. Bistability of atmospheric oxygen and the
Great Oxidation. Nature. 443(12): 683-686, 2006.

Guivant, J. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambiente & Sociedade – Vol. IX nº. 1, 2006.

Hugh Lacey. A Controversia Sobre Os Transgênicos: Questões Científicos E Éticos. A Controversia Sobre Os Transgênicos: Questões Científicos E Éticos. 2006. http://works.swarthmore.edu/fac-philosophy/192/. [Acessado em 15 de janeiro de 2016].

Mattei L. Produtos transgênicos: problemas e incertezas para a segurança alimentar. Revista Economia Ensaios. 15(1):2000.

Peter Ward. The Medea Hypothesis: Is Life on Earth Ultimately Self-Destructive? Princeton University Press. 2009.

World Health Organization. Food safety: 20 questions on genetically modified foods. http://www.who.int/foodsafety/areas_work/food-technology/faq-genetically-modified-food/en/. [acessado em 15 de janeiro de 2016].

quinta-feira, 12 de março de 2015

A Oitava Tartaruga



Um mito sobre a evolução no qual as pessoas ainda acreditam, apesar dos esforços de cientistas ilustres como Stephen J. Gould desmentirem, é a ideia de que a evolução é uma escada para o progresso no qual os mamíferos, e dentro desses o homem, ocupam o lugar mais alto como os seres mais evoluídos do planeta e quando olhamos para baixo vemos nossos primos menos evoluídos tais quais eles sempre foram. Crocodilos sempre foram rastejantes em terra e aquáticos, lagartos sempre arrastaram suas barrigas e caudas, tartarugas sempre foram lerdas e pesadas, anfíbios sempre foram sapos, frios e normalmente vivendo em lugares sujos.
Essas ideias são facilmente derrubadas ao vermos o registro fóssil e encontrar tamanha diversidade dentro desses grupos, sendo a única conclusão possível a de que as espécies atuais são tão evoluídas quanto qualquer outra espécie de mamífero, inclusive nós, e que seus ramos ocupam a mesma altura dentro da árvore da evolução. Porém é possível que o ramo dos cetáceos esteja um pouco mais alto que o nosso pois esses mamíferos, após um período em terra, retornaram a vida nas águas se tornando um pouco mais derivados do que nossa linhagem de grandes primatas.
Ainda assim os mitos persistem, em parte porque as definições que popularmente são dadas a esses animais partem de uma comparação direta conosco: rastejante, lerdo, frio são antropomorfizações desses animais, e embora evitadas pela ciência atual vez ou outra ainda aparecem, tendo sido empregadas por diversos naturalistas como Owen, nas suas descrições e explicações. O estigma de répteis burros e lerdos que viviam em pântanos, que ainda cerca os dinossauros, vem dessas primeiras interpretações e comparações com lagartos e crocodilos atuais. Ainda hoje, uma caminhada num zoológico lotado permite presenciar uma série de comentários sobre quais bichos são feios, quais são bonitos, quais são burros... todos, claro, tendo o ser humano como medida padrão.
Outro motivo desta visão encontra-se na pratica antiga da humanidade para explicar o mundo atribuindo características humanas a objetos inanimados, a chamada Falácia Patética (Abram & Harpham, 2011). Dentro dos mitos das antigas e atuais religiões ela tem sido uma constante, principalmente por atribuirmos aos animais um significado no mundo mais primordial e quase sempre para sustentar nossa própria existência.
Não é de se admirar que a tartaruga tenha sido escolhida para carregar o mundo nas costas ou pelo menos os elefantes que o sustentavam (posso ver essa conversa se desenrolando em volta de uma fogueira a medida que a parcimônia é abandonada em favor dos elementos mais claros e diários: mas o que sustenta o mundo? Quatro elefantes -lógico, elefantes são grandes, mas não grandes o suficiente para sozinhos sustentarem o mundo- mas os elefantes onde estão? Em cima de uma tartaruga, um animal resistente e grande de costas largas formando uma superfície rígida que pode sustentar os elefantes. Mas e a tartaruga? Oras, a tartaruga está nadando, como faz nos oceanos, no mar do infinito).
Nem sempre a tartaruga é escolhida, em outro exercício imaginativo a mitologia árabe traz Bahamut, o peixe, sustentando em suas costas o touro e em cima do touro uma montanha, na montanha existe um anjo que segura as sete terras. Uma versão alternativa traz que nas costas do touro existem rochas que sustentam as água e nas águas está a Terra. A sequencia pode ter se complicado, mas alguns elementos se repetem, um animal aquatico sustentando outro ou outros fortes e grandes que por sua vez sustentam o mundo.
Mas peixes e touros não são o alvo dessa coluna e sim tartarugas. Em especial porque eu precisava de um incentivo a voltar a escrever no blog e ele veio na triste noticia do falecimento de uma das mentes mais brilhantes e afiadas que o Homo sapiens já produziu. Hoje faleceu Terry Pratchett, que além de um escritor fantástico, era um naturalista amador com especial interesse em orangotangos (Ooook?!) e plantas carnívoras. Sua série de livros mais famosa, Discworld, brinca justamente com o mito da tartaruga que sustenta os elefantes que sustentam o mundo em forma de disco, um mundo que, nas palavras que abrem um de seus livros, “foi criado por deuses com mais criatividade do que senso prático”. Suas histórias satirizam diversas situações da nossa sociedade, mas também brincam com a impossibilidade de tal mundo existir e da necessidade de forças mágicas e intervenção divina para que continue existindo ao ponto que seja impossível duvidar da sua existência.
Voltando as tartarugas, grande A’tuin, que na mitologia do Discworld sustenta os elefantes, aparece pouco nas histórias, mas sua presença é tão marcante e sua existência tão determinante na estrutura das histórias que ela é de longe o personagem mais conhecido – até mesmo por quem nunca leu os livros. Essa fama é tão grande que em 1995, Köhler, um paleontólogo do Departamento de Geologia da Universidade de Otago na Nova Zelândia, batizou uma tartaruga fóssil com o nome de Psephophorus terrypratchetti.
Psephophorus terrypratchetti é uma tartaruga da família Dermochelyidae, cuja principal característica é não possuir uma carapaça ou plastrão ósseos. O “casco” das tartarugas, bem como dos Jabotis e Cágados, em geral, é formado por dois conjuntos ósseos separados (Figura 1). A carapaça, que protege o dorso e as laterais, possui duas camadas, uma delas de placas ósseas e uma segunda que cobre essas placas (Figura 1 A), mais fina chamada de escudos e formandos por fibras de proteínas queratinizadas (Romer, 1997). As placas ósseas da primeira camada são fundidas as vértebras e costelas (Pough et al., 1993) (Figura 2), tornando impossível para o animal sair de seu casco como os desenhos animados gostam de mostrar e tornando verdadeira a maldição de Zeus sobre a ninfa Chelone que se atrasou para o casamento do líder dos deuses e foi condenada a carregar sua casa sobre suas costas. O plastrão (Figura 1 B)é formado por placas ósseas ligadas lateralmente a carapaça (Romer, 1997).

Figura 1: Esquema representando as partes da carapaça e plastrão dos Testudines. A) Carapaça (dorsal); B Plastrão (ventral); C) Lateral. Linhas tracejadas mostram os limites dos escudos ósseos. (Retirado de Romer, 1997)

Figura 2: Vista ventral de um esqueleto de Chelydra serpentina. Note as vértebras e costelas fundidas a carapaça (Fonte: Wikipedia).

O que difere a carapaça das Dermochelyidae do restante dos Testudinos? As dermoquelides são popularmente chamadas de Tartarugas de Costas de Couro, e uma espécie muito conhecida daqueles que visitaram qualquer base do Projeto Tamar é a Dermochelys coriacea que pode alcançar seus 2,5 metros de comprimento. O nome Costas de Couro não é sem fundamento, ao contrário das outras tartarugas, as placas ósseas são incrivelmente reduzidas e não se fundem na caparaça ou mesmo com as vértebras e costelas, ao invés disso, uma grande quantidade de ossículos formam um mosaico em uma pele espessa e coriácea, livre das costelas e vértebras (Figura 3). Esse padrão se une com seu equivalente ventral formado por cinco cristas longitudinais (Romer, 1997). Esse arranjo é motivos de longos debates sobre a evolução do arranjo carapaça e plastrão. Alguns estudos tentam colocar a carapaça das dermoquelide como um modelo para os quelônios basais do qual teria se derivado a carapaça e plastrão atuais (Baur, 1889; Dollo, 1901; Versluys, 1914; Hay, 1922), enquanto poucos consideram as costas de couro como um estado mais derivado dentro da evolução das Tartarugas (Zangerl, 1939). De certa forma, a ideia de que uma espécie do gênero Psephophorus, sendo a Psephophorus terrypratchetti a última depois de outras sete espécies fósseis (Köhler, 1995), fosse um ancestral direito das Dermochelys atuais foi predominante até a análise filogenética de Wood et al. (1996) mostrar que o gênero Psephophorus estava relativamente distante de Dermochelys.


Figura 3: Vista externa do mosaico de óssiculos na região dorsal de Psephophorus terrypratchetti.
O gênero, no entanto, após um tempo de vida relativamente longo surgindo no Eoceno (56 Ma) veio a desaparecer no Plioceno (2,56 Ma) sem deixar descendentes (Romer, 1997). Seus fósseis ocorrerem por quase todo o mundo tendo fósseis na Europa, América do Norte, África e Nova Zelândia (Köhrle), essa ultima região onde foi encontrada P. terrypratchetti. Se você chegou até aqui aprendendo algo mais sobre a evolução e morfologia das tartarugas já me sinto feliz, mas sei que alguns esperam uma lição maior de tudo isso, especialmente de um texto que começa falando sobre mitos e de como os utilizamos para explicar grandes episódios.
Pois bem, Köhler encontrou seis exemplares de P. terrypratchetti todos das mesma um unidade geológica, em concreções do rio Waihao acima de um arenito rico em fósseis de moluscos, o que evidencia águas com temperaturas quentes, Köhler admite uma temperatura entre 18° e 20° com base nos estudos de isótopos de oxigênio de Devereux (1967, 1968). Atualmente, as tartarugas do gênero Dermochelys não costumam se reunir em grupos exceto durante a estação de acasalamento que ocorre em águas com temperaturas de aproximadamente 20°. Köhl também concluiu, pelo tamanho das vértebras, que se tratavam de indivíduos adultos. Portanto, os fósseis de P. terrypratchetti da Nova Zelândia representam um estoque reprodutivo! Muitos desses animais, em semelhança a que ocorre com a Dermochelys devem ter dado suas ultimas forças para chegar até ali sendo vitimas da exaustão ou de predadores.
Peço desculpas pelo spoiler, mas o livro é cheio de passagens incríveis e a leitura ainda vai ser divertida para os que não conhecem. Em seu livro a Luz Fantástica, Pratchett coloca o mundo do Disco em uma rota de colisão com uma estrela vermelha que possuía oito luas quando Grande A’tuin, a tartaruga que carrega os elefantes que sustenta o mundo, passa a nadar em sua direção. Aparentemente o único que poderia evitar isso seria o azarado e inepto mago Rincewind, incapaz de fazer qualquer magia por guardar em sua mente os oitos feitiços mais poderosos do mundo. Após os problemas que se seguem na história e quando a Grande A’tuin está próxima demais da estrela e suas luas, Rincewind libera os feitiços fazendo com que as luas se quebrem e revelem oito pequenas tartarugas, cada uma com seus elefantes e mundos. No fim, Grande A’tuin estava indo para seu lugar reprodutivo.
O numero oito tem um grande impacto sobre as histórias de Pratchett que envolvem seus magos e o leitor mais atento e fã dos livros já deve ter antecipado o final desse texto. Vejo os paleontólogos que descobriram cada espécie do gênero Psephophorus como Rincewind e sua jornada junto a Grande A’tuin. Eles também precisaram viajar para longe de suas rotas normais, às vezes enfrentando o calor inclemente de uma estrela (amarela, não vermelha, pela classificação astronômica) e diversos obstáculos involuntários do dever para com suas ferramentas e conhecimento abrirem as rochas que revelaram cada uma das sete mais uma espécies de Psephophorus. A Oitava, claro, não poderia ser ninguém além da simbólica e significativa Psephophorus terrypratchetti.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMS, M.H.; HARPHAM, G.G. A Glossary of Literary Terms. Wadsworth, Cengage Learning. p. 269, (2011) [1971].

DEVEREUX, I. Oxygen isotope paleotemperature measurements on New Zealand Tertiary fossils. New Zealand journal of science and technology 10: 988-1011, 1967.

DEVEREUX, I. Oxygen isotope paleotemperatures from the Tertiary of New Zealand. Tuatara
16(1): 41-44, 1968.

DOLLO, L. Sur l’origine de la tortue luth (Dermochelys coriacea). Bull Soc. Roy. Sx. Med. Nat. Brussels. Pp. 1-26, 1901.

HAY, O. P. On the phylogeny of the shell of the Testudinata and the relationships of Dermochelys. > Morphol. 36: 421-445, 1922.

KOHLER, R. A new species of the fossil turtle Psephophorus (Order Testudines) from the Eocene of the South Island, New Zealand. Journal of the Royal Society of New Zealand. 25(3):371-384, 1995.

POUGH, F. H.; HEISER, J. B.; McFARLAND, W. N. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 754 p., 1993.

ROMER, A. S. Osteology of the reptiles. Reprint Edition. Malabar: Krieger Publishing Company, Berlin, 772, 1997.

VERSLUYS, J. Die mittlere und äussere Ohrsphäre der Lacertilia. Zool. Jahrb., Anat., 12: 160-406, 1898.

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