Em minhas aulas de metodologia de
pesquisa, quando preciso deixar claro porque devemos testar e confrontar nossas
observações com a de outros colegas pesquisadores, pois nossos sentidos,
infelizmente, tende a nos enganar com frequência, costumo contar a história dos
três cegos e o elefante. Tendo eles tocado cada um uma parte do animal,
descreveram- o elefante como sendo um animal colunar e roliço; comprido e
maleável; uma parede curva igual a um tambor. A briga irrompeu entre os cegos,
pois cada um tinha certeza do que havia “visto” e não desejava abrir mão ou
complementar sua visão do que era um elefante. As ciências, em especial a
paleontologia, são feitas de modo parecido. Cada pesquisador observa e coleta
dados, os organiza em informações e então os coloca a prova de seus pares.
Quando bem feita (leia-se: testada e discutida)
as visões se completam e nós temos uma ideia um pouco melhor de como se parece
mais uma parte da realidade. Esta, no entanto, é uma curva que tende ao
infinito e provavelmente nunca veremos o quadro completo.
Na Paleontologia lidamos com
animais e plantas que não existem mais e que existiram em um contexto ambiental
e geográfico que também desapareceu. Recolhemos os fósseis e as rochas onde
eles são encontrados e tentamos, como os cegos, enxergar algo, mas só temos a
visão parcial, quando muito fragmentada, do quê e como aquele ser se parecia ou
onde viveu. Para preencher os espaços nos valemos da comparação e da máxima
dita por James Hutton: O presente é a
chave para o passado. Reunimos nossos fósseis quebrados e dispersos e
procuramos no que existe hoje qualquer coisa que seja parecida e nos permita
inferir e especular sobre como o organismo teria sido.
Em termos leigos, é um chute, mas
feito com embasamento. Como tudo mais na ciência ele deve ser passível de
verificação e, embora a comparação morfológica seja útil para ossos, ela deixa
a desejar quando entramos em tecidos e partes que não se preservam, órgãos como
pele, coração, nervos, tudo isso é perdido e somente nas melhores, mais
oportunas e raras condições se preservam, as chamadas langerstätten. Depósitos fósseis com excelente grau de preservação
e informação (Hozl & Simões, .
Thomas Huxley, amigo muito
próximo de Darwin e um de seus mais fiéis escudeiros, já havia inferido uma
proximidade entre aves e dinossauros dada a morfologia dos mesmos. Isso
contrariava as reconstruções especulativas de Richard Owen, na época que
aproximavam dinossauros dos lagartos e os colocavam como pesados e lentos
repteis. Owen foi o criador da palavra “Dinossauro” e também o primeiro a
realizar reconstituições dos mesmos em vida. Ele também cometeu o erro de
considerar o polegar afiado do Iguanodon
como sendo um chifre nasal, pois sua visão de répteis lerdos e quadrupedes não
aceitava um animal bípede facultativo com leve manobrabilidade manual. A visão
de Huxley só foi confirmada com a descoberta do famoso Archaeopteryx lithographica
(Meyer, 11861) em que não apenas a estrutura osteológica aviana era evidente
como a preservação das penas fazia do local onde foi achado uma langerstätte importantíssima.
Owen - ferrenho opositor de
Darwin - e Huxley ainda trocariam longas discussões sobre a herança do Archaeopterix, e dinossauros ainda
seriam vistos como lagartos por mais meio século, mas a introdução da
sistemática cladística e mais achados fósseis colocaram à prova essa informação
e hoje reconhecemos as aves como dinossauros. As semelhanças são tantas que é
comum encontrar na literatura cientifica o termo “non-avian dinosaur” (dinossauro não-aviano), para se referir aos
dinossauros que não são aves.
Dois outros trabalhos importantes
de Huxley voltam a se unir. Sabemos agora que aves são dinossauros e que esses
são um grupo-irmão dos Crocodylomorpha. Em seu trabalho de 1875, Huxley
apresenta a primeira classificação com base na evolução do palato secundário dos
Crocodilos, anos antes ele havia descrito e nomeado o órgão vocal único das
aves: a siringe (Huxley, 1872).
A proximidade dos dinossauros
não-avianos com aves e crocodilos, confirmada pela osteologia, nos permite
inferir com mais segurança os detalhes que não se preservaram de seus fósseis,
já que temos o suporte de dois grupos com representantes vivos que podemos
observar. Assim, podemos testar nossas especulações ao traçarmos comparações
com esses grupos. A esse teste nos referimos como extant phylogenetic bracket (Witmer, 1995). E podemos usar um
exemplo aqui:
Qualquer estudante de ensino
médio ou biologia sabe que o coração dos vertebrados é radicalmente diferente
entre os agrupamentos clássicos. Peixes possuem um coração tubular com 3
câmaras com circulação unidirecional. Anfíbios possuem a divisão entre átrio e
ventrículo, com dois átrios, mas apresentam mistura sanguínea no ventrículo
único. Répteis apresentam uma divisão parcial dos ventrículos, mas ainda mistura
sangue, sendo uma exceção os Crocodilia que possuem o coração dividido em
quatro câmaras, tal quais os “vertebrados superiores”, aves e mamíferos
(Hildebrand & Goslow, 2006).
Como seria o coração dos
dinossauros?
O senso comum herdado de Owen nos
diz que provavelmente do tipo réptil com três câmaras, apresentando mistura
sanguínea. Mas sabemos hoje que dinossauros são próximos tanto de Crocodilia,
quanto de aves, grupos com um coração dividido em quatro cavidades. Se
aplicarmos a regra do suporte ancestral, é muito menos custoso que o ancestral
comum de Crocodilos e aves já tivesse um coração com quatro cavidades e que
ambos os grupos tenham herdado essa condição. Como dinossauros-não avianos é um
grupo intermediário, ele recebe suporte dos grupos atuais e podemos inferir com
relativa segurança que possuíam um coração com quatro cavidades.
Um leitor mais atento (e torço
para que alguns dos meus alunos sejam esse leitor) pode observar que Crocodilia
apresenta alguma mistura sanguínea, sendo realizada por um foramen aberto entre
os dois arcos aórticos conhecido como foramen de panizza. Essa característica
só ocorre em Crocodilia, estando ausente em aves e mamíferos, e é reconhecida
como uma adaptação a ocupação tardia do ambiente aquático (Seymour et al.,
2004), como dinossauros nunca fizeram uma transição total para o modo de vida
semi-aquático ou aquático como os crocodilianos, então não há suporte para essa
característica.
Algumas questões ainda escapam
desse teste de inferência a medida que ele necessita que o grupo fóssil possua
grupos atuais para dar uma sustentação. Assim, a endotermia dos dinossauros
ainda é debatida, já que aves são endotérmicas, enquanto que crocodilianos
atuais são ectotérmicos e não temos como saber se as formas terrestres do
Mesozóico eram endotérmicas ou ectotérmicas. Embora autores como Seymour et al.
(2004) considerem a ectotermia dos crocodilianos atuais como uma adaptação ao
modo de vida aquático (Figura 2). Outra questão debatida era a vocalização produzida pelos
dinossauros.
Exemplode inferencia equivocada. Não é possível confirmar a ectotermia ou endoterma para dinossauros não-avianos (imagem modificada de Witmer, 1995). |
Quando se trata da vocalização
dos dinossauros somos como o cego que comparou a barriga do elefante com um
tambor. Nosso senso comum dita que os predadores rugem, mas a maioria dos
predadores que estamos acostumados são mamíferos como nós, com uma laringe,
faringe, cordas vocais e aparato vocal semelhante ao nosso. Como a narrativa
cinematográfica precisa que as pessoas tenham medo dos dinossauros, as
reconstituições os fazem rugir como leões. Para os paleontólogos tentando
inferir o som dos dinossauros a pergunta era diferente: dinossauros piavam,
cantavam e grasnavam como aves ou emitiam sons de baixa frequência como os
crocodilos?
A vocalização dos crocodilos e
aves difere consideravelmente, dos primeiros é produzida pela laringe, enquanto
as aves possuem um órgão único aqui já mencionado, a siringe, nomeado e
descrito por Huxley (1872). A siringe é um órgão particular, relacionado à
respiração de sentido único por sacos aéreos das aves. Situa-se na base da
traquéia, na bifurcação dos dois brônquios, É formada por um conjunto de anéis traqueobronquiais
de cartilagens mineralizados unidos a anéis de músculos (Figura 3). Esse conjunto é
sustentado por um par de membranas situadas na base de cada brônquio. Pássaros
canoros possuem entre cinco a nove pares de músculos siringeais, psitacideos em
torno de três pares, enquanto falconiformes possuem dois pares. O restante das
aves em sua maioria possui apenas um par. Já urubus, cegonhas e ratitas
(avestruzes e outras aves que não voam) não possuem músculos siringeais (Pough et al.,
2003; Hildebrand & Goslow, 2006; Clarke et al, 2016).
Portanto, sabemos que as aves
mais basais, as ratitas, (Grealy et al, 2017) possuem uma siringe muito
simples. Não sabemos, no entanto, se dinossauros já possuíam esse órgão e nesse
caso o suporte ancestral não parece nos ajudar, já que Crocodilia não possui
siringe. Para responder a questão primeiro precisamos saber quando a siringe
surgiu, sendo um órgão composto de tecidos moles as chances de preservação são
pequenas. Porém, no final do ano passado Clarke et al (2016) descreveram a
primeira siringe fossilizada para a ave fóssil batizada de Vegavis iaai Clarke et al 2005 (Figura 4).
Figura 4: A siringe do Vegavis iaai vistos por tomografia computadorizada (Clarke et al., 2016). Os número I-IX indicam os anéis de cartilagem mineralizados. |
O pequeno ganso do Cretáceo
Superior trouxe repercussões na mídia que rapidamente divulgou a descoberta
como a interpretação final de como os dinossauros vocalizavam. Abundaram vídeos
dos animais de Jurassic Park dublados por patos e gansos. Embora seja hilário
imaginar um Tryannosaurus grasnando, algo que os autores não afirmam em momento
algum do artigo, a conclusão deles se apresenta bem conservadora. Embora a
descrição de uma siringe complexa com nove elementos mostre que o órgão atingiu
uma complexidade rápida dentro de aves, ela ainda só ocorre em aves! E eles não
poderiam ter deixado mais didático no cladograma que apresentaram (Figura 5).
No cladograma são comparados
Crocodilia, representados por Alligator
mississipiensis, e Aves representadas por Palaeognathae (Ratitas) e
Neognathae, basicamente todas as outras aves existentes. As únicas espécies
extintas são Presbyornis e Vegavis. O surgimento da siringe marca o
inicio de Aves, temos então diferenciação e mineralização dos anéis
traqueobronquiais e origem da musculatura que alterna a tensão das membranas e
aberturas bronquiais. Essa é a condição dos Palaeognathae. Qualquer um que já
ouviu os tum tum tum produzidos por
um avestruz ou ema, agora vai saber que isso se deve a falta do pessulus, uma estrutura ossificada e
robusta localizada na linha média da passagem de ar dos brônquios onde
membranas vocais se prendem. Vegavis
e todos os Neognathae possuem um pessulus.
O cladograma sabiamente omite
dinossauros não-avianos. Mas se tentássemos o extant phylogenetic bracket para onde eles penderiam? Provavelmente
para o lado dos Crocodilia. Clarke et al (2016) colocam de maneira bem clara, a
fossilização de uma siringe depende da mineralização dos anéis
traqueobronquiais. Quando a mineralização é inexistente, como ocorre em
Crocodilia, a preservação não ocorre. A ausência de preservação dessas
estruturas em dinossauros não-avianos seria pelo mesmo motivo dos Crocodilianos:
eles não possuíam anéis traqueobronquiais mineralizados (Figura 6). Como os anéis
mineralizados são uma das exigências para a siringe, dinossauros não as teriam,
desse modo precisamos olhar para outras hipóteses tais como a vocalização laringeal
dos crocodilianos, câmaras de ressonância como ocorriam em alguns grupos como o Parasaurolophus ou até a mais triste de
todas: eles serem mudos (Wheishampel, 1981; Evans, 2006, Senter, 2008).
Teríamos então, até o surgimento da siringe no Cretáceo, a maior parte do
Mesozoico dominada por coachar de rãs, barulhos de insetos e o ribombar dos
crocodilianos. Mas os gigantes dominantes dessa época passariam silenciosos.
Regentes mudos contemplando em silêncio seu reino. Por sorte, seus fósseis são
bem tagarelas.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLARKE, J. A., et al. 2016. Fossil evidence of the avian vocal
organ from the Mesozoic. Nature. 538, 502–505
EVANS, D. C. 2006. Nasal cavity homologies and cranial crest function in lambeosaurine dinosaurs. Paleobiology 32, 109–125.
GREALY, A., ET AL. 2017. Eggshell palaeogenomics: Palaeognath evolutionary
history revealed through ancient nuclear and mitochondrial DNA from
Madagascan elephant bird (Aepyornis sp.) eggshell. Molecular Phylogenetics and Evolution.
HILDEBRAND, M.; GOSLOW, G.
Análise da estrutura dos vertebrados, 2a edição, São Paulo: Atheneo Editora,
2006.
HOLZ, M.; SIMÕES, M. G. 2002. Elementos fundamentais de tafonomia. Ed. Universidade.
HUXLEY, T. H. 1872. A Manual of the Anatomy of Vertebrate Animals. Appleton.
HUXLEY, T. H. 1875. On Stagonolepsis robertoni, and on the
evolution of the Crocodylia. L. L. D., Sec. R. S. F. G. S. 423-438.
POUGH, F. H.; HEISER, J. B.; McFARLAND, W. N. 1993. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu, 754 p.
SENTER, P. 2008. Voices of the past: a review of Paleozoic and Mesozoic animal sounds. Hist. Biol. 20, 255–287.
WEISHAMPEL, D. B. 1981. Acoustic analyses of potential vocalization in lambeosaurine dinosaurs (Reptilia: Ornithischia). Paleobiology 7, 252–261.
WITMER, L. M. 1995. The extant phylogenetic bracket and the importance of reconstructing soft tissues in fossils. Functional morphology in vertebrate paleontology, 1, 19-33.