Em outubro de 2016 participei do
76º Encontro da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados (SVP Meeting), que
podemos colocar como a Comic-Con da minha área de atuação (A figura 1 não me deixa mentir). Entre diversas
palestras, campos e conversas mais descontraídas, eu acabei me encontrando com
Robert Bakker, cujo livro “The Dinosaur Heresies” me colocou no caminho da
paleontologia. Tive a chance de conversar com ele, tirar uma foto (Fig. 2) e até ter meu
exemplar do Dinosaur Heresies autografado (comprado naquele dia em um dos
inúmeros stands que vendiam livros na convenção). Mas também pude trocar um
aperto de mão com ele, e a importância desse gesto, embora muito pessoal, só me
veio à mente agora no aniversário de falecimento de um dos mais influentes e
importantes biólogos que tivemos, e que também está no meu hall particular de
influências. Falo de Stephen Jay Gould.
Figura 1: SVP Meeting: também conhecida como o melhor congresso científico. |
Figura 2: Eu, Leila e Mr. Bakker, o Herege dos Dinossauros. |
Para os que não conhecem ou não
sabem de sua importância, Gould, além de ser um grande divulgador científico,
também era um evolucionista de mão cheia que, juntamente a Eldredge, propôs o Equilíbrio
Pontuado (Gould & Eldredge 1977; Eldredge & Gould 1985) como uma alternativa ao
gradualismo que até então imperava no Darwinismo, mas que não conseguia
responder por que, em uma sequência de fósseis, na maioria das vezes as formas
transicionais não estavam presentes? Darwin, e muitos depois dele, se apoiaram
na falha do registro geológico: nem tudo é preservado quando falamos de
sistemas deposicionais de milhões de anos e organismos que viviam próximos a
eles. As chances de algo morrer e encontrar as condições certas de soterramento
rápido e fossildiagênese são baixas. O raciocínio gradualista levou a
exercícios de imaginação interessantes e curiosos: suponha que não tenha
ocorrido extinção entre o ancestral comum dos chimpanzés e toda a linhagem de
hominídeos até o Homo sapiens. Se
todos os ancestrais e descendentes se colocassem de mãos dadas veríamos um
gradiente muito leve de mudanças quase imperceptíveis de um para o outro e não
saberíamos dizer quando uma espécie termina e a outra começa.
O que Gould e Eldredge
questionavam : é possível o registro sempre ser falho? Ou será que em alguns
casos a evolução ocorre rápido demais? Quando olhamos para fósseis não
estaríamos vendo momentos de estabilidade morfológica dentro daquela espécie
cujas mudanças que dariam origem a novas espécies operariam de modo rápido em
populações periféricas como respostas a mudanças ambientais? Para Gould o
conceito de contingência, mudanças grandes como respostas a eventos pontuais,
deveria ser considerado na hora de falarmos da evolução das espécies (Gould 2000).
No gradualismo assume-se que
mutações vão gerando pequenas variações dentro da população, essas variações
vão se fixando a medida que concedem vantagens para os indivíduos para
sobreviverem e se reproduzirem (Fig. 2B). Com o passar do tempo os indivíduos mais
recentes da população acumularam mudanças suficientes para serem
morfologicamente diferentes dos indivíduos mais antigos (BARBARENA 1984). A evolução gradualista é a
rampa da escalada do monte improvável de Dawkins (Dawkins 1996).
O Equilíbrio Pontuado, por sua
vez, entende a evolução em saltos. As espécies são adaptadas ao seu meio e, portanto
morfologicamente estáveis; mutações ainda ocorrem mas a maioria é de caráter
neutro, sendo substituições nas bases nucleotídicas que não codificam
diferentes sequências de aminoácidos e aquelas que realmente trariam alguma
mudança tem baixa ocorrência e quase nunca se manifestam. Em algum momento, no
entanto, uma população periférica se isola. Essa população permanecerá em
estase morfológica durante muito tempo, até um evento pontuado ocasionar uma
mudança rápida - em termos geológicos. Esse evento quase sempre está
relacionado a um agente externo, no ambiente, como alterações climáticas ou um
desastre natural. O ramo isolado torna-se rapidamente outra espécie. A nova
espécie então prossegue de volta ao território antigo e pode coexistir com a
espécie ancestral ou substitui-la (Fig 2A). Para Gould esse modelo de especiação era o
dominante na evolução, embora não fosse o único (Gould & Eldredge 1977; Gould 1982; Eldredge &
Gould 1985).
A teoria do Equilíbrio Pontuado
não foi rapidamente aceita, na verdade biólogos de peso como Dawkins eram
contrários ao Equilíbrio Pontuado, especialmente por ele ir contra uma das
principais ideias de Darwin, o gradualismo (Dawkins 1986). Para Dawkins, por exemplo, o
gradualismo era constante e as migrações criavam as falhas no registro. Outros
lançam críticas sobre o fato do Equilíbrio Pontuado ser um resgate da teoria do
“monstro promissor” de Goudlschmit (Gould 1977; Smith 1983). Para esses críticos o Equilíbrio
Pontuado seria uma espécie de saltacionismo. Uma mutação aleatória na população
criaria o indivíduo ancestral em apenas uma geração. Gould gastou boa parte de
suas publicações (e.g Wonderfull Life e O Polegar do Panda, bem como Gould,
1982) desmontando a ideia de que o Equilíbrio Pontuado não opera em apenas uma
geração, sua escala rápida é a geológica. Uma das principais confusões, no
entanto, era entender o Equilíbrio Pontuado como uma espécie de Simpatria ou
Parapatria, quando na verdade ele nasceu no contexto da Alopatria de Mayr (Mayr 1954).
Para entender a confusão, e também
porque as críticas não fazem sentido, precisamos antes compreender os conceitos
de especiação. A primeira coisa a ser deixada clara é: o Equilíbrio Pontuado,
como proposto por Gould e Eldredge, não tratava de macroevoluções, ou seja, do
surgimento dos taxa de maiores níveis hierárquicos, e sim da microevolução, o
surgimento das espécies (Gould 1982). A macroevolução seria uma
consequência das espécies que surgiram sobreviverem tempo suficiente para criar
um padrão e elas mesmas originarem outras espécies conforme atestado por Lieberman & Eldredge (2014)e pelo próprio Gould (1982)
que não via sentido em dividir a evolução em macro e micro. No cladograma
abaixo se a espécie A não tivesse originado a espécie A’ ela poderia continuar
sendo agrupada no mesmo nível hierárquico taxonômico que B e C (Fig. 3).
Portanto, o surgimento de
famílias, classes, ordens, e filos (porque não reinos?) está ligado diretamente
com a especiação. Hoje entendemos quatro modelos pelos quais ela pode ocorrer.
Na Alopatria, proposta por Mayr, uma
espécie ocupa uma área, porém, é isolada em populações que então se diferenciam
genética e morfologicamente. A Peripatria
é semelhante à alopatria no sentido que exige que uma população da espécie se
isole geograficamente, porém, o isolado periférico é muito menor que a
população original. Como o leitor deve ter percebido a Peripatria se aproxima
muito do Equilíbrio Pontuado, as principais diferenças entre a Alopatria de Mayr
e o Equilíbrio Pontuado são a velocidade com que as mudanças ocorrem e as falhas
do registro fóssil, o qual, para Mayr explicava a ausência das formas
transicionais(Futuyma 2002).
As outras duas formas de
especiação são a Simpatria e a Parapatria. Na Simpatria, mudanças
genéticas (e graduais) levam ao isolamento genético de parte da população e consequentemente
ao surgimento de nova espécie. É um modelo problemático no sentido de haver
poucas evidências, alguns apresentam dúvidas se ele realmente ocorreria (Fitzpatrick,
et al, 2008). Por fim, a Parapatria, duas
populações de uma espécie, que ocupam áreas próximas, mas que não se sobrepõem,
desenvolvem isolamento genético enquanto a troca genética ocorre, dado a
seleção de parceiros e um fluxo genético desigual. Um exemplo claro de Parapatria
seriam as espécies anel, onde as populações que habitam as fronteiras das áreas
de distribuição conseguiriam realizar a troca genética, mas a compatibilidade
diminui à medida que se afasta da área de contato (Futuyma 2002).
Figura 4: Esquema dos quatro tipos de especiação: Alopatria, Peripatria, Parapatria e Simpatria. |
Portanto, podemos assumir que o Equilíbrio
Pontuado agiria em especiações alopátricas e peripátricas, se levarmos em conta
a velocidade (em termos geológicos) do período de estabilidade e mudança.
Confesso que não é um assunto
fácil, ainda mais dentro de um campo altamente teórico e dependente de modelos
como a especiação. Mas para identificar o Equilíbrio Pontuado devemos buscar
três coisas: i) isolamento geográfico de uma população periférica da espécie;
ii) período geológico longo de estabilidade (nenhum mudança acontece ou é fixada);
iii) evento desencadeia rápida mudança (em termos geológicos) e seleção dos
indivíduos resultando em nova espécies.
A teoria de Gould permanece
controversa, e não era esperado menos do padrinho dos Underdogs da ciência. Vários dos ensaios de Gould tratam de
resgatar e tentar redimir cientistas que no passado ousaram questionar ou
pensar fora da caixa da ciência da época. Em “O pônei do Senhor Sophia”, Gould
vem em defesa de Vladimir Kovalevsky, marido de Sophia Kovalevsky ( a mulher
mais importante para a matemática do século XX) e sua hipótese para a origem e
ancestralidade dos cavalos atuais estarem ligada com os fósseis encontrados na
Europa. Hoje sabemos que esta hipótese está errada. Vladimir desconsiderou os
fósseis norte-americanos -os cavalos surgiram na América do Norte- e os fósseis
europeus representam linhagens extintas sem descendentes. Mas, argumenta Gould:
“Se uma afirmação não pode ser refutada, não
pertence ao empreendimento da ciência. Um campo novo (como era o caso da
paleontologia evolucionista no tempo de Kovalevsky) que trabalha com dados
imperfeitos (o registro fóssil) apresenta-se especialmente sujeita a erros – e
os bravos cientistas devem dar melhor de si e assumir os riscos das
consequências, confiantes de que a retificação de um equívoco (por mais
embaraçoso que seja, do ponto de vista pessoal, para aquele que o perpetra)
produz tanto esclarecimento quanto uma descoberta legítima” (Gould 2003), pag. 190).
Em “O Velho Louco Randolph
Kirckpatrick”, Gould apresenta a teoria da Numolosfera, a ideia de que toda a
Terra (e até mesmo meteoros) era formada pela acresção das conchas de
Numulites. Kirckpatrick não é apresentado como um louco, mas como um ousado
cientista, Gould em momento algum defende a possibilidade de que a Numolosfera
seja verdadeira, mas coloca que “cientistas
como Kirckpatrick pagam um preço elevado, porque geralmente estão errados. Mas,
quando tem razão, podem estar tão visivelmente certos que suas ideias depreciam
o trabalho honesto de muitas vidas cientificas nos canais convencionais” (Gould 2004, pag 208). A ideia de Gould
era clara, cientistas devem ser ousados e corajosos, devem estar dispostos a
arriscar. Ele mesmo se arriscou ao afirmar que o gradualismo de Darwin estava
errado. E como alguém ousa elevar-se contra Darwin, certo? Mas o próprio Huxley
já havia alertado Darwin sobre isso: “você arcou com uma dificuldade
desnecessária ao adotar tão sem reservas o princípio ‘Natura non facit saltum’”
(Huxley 1859). Para Huxley, conforme ele
expressa no restante do parágrafo, pequenos saltos ocorriam.
No dia de hoje a 15 anos atrás
Stephen J. Gould falecia “em sua casa, em uma cama colocada na biblioteca de
seu loft Soho, cercado por sua esposa Rhonda, sua mãe Eleanor, e os muitos
livros que ele tanto amou” (Krementz 2002). Há 15 anos nessa mesma data
eu iniciava meu primeiro semestre em Ciências Biológicas. Por esse motivo,
nunca tive a mesma chance de conhecer Gould como pude conhecer Bakker.
Encontro-me com ele, no entanto, sempre que leio seus ensaios ou artigos. E volta
e meia acabo lamentando a impossibilidade de ter trocado um aperto de mão dele
com algum amigo da área. Foi somente ao ler Wonderful Life que consegui, em
partes, superar isso. Como um bom cientista, essa explicação vai demandar
alguns passos.
O primeiro é retomarmos o exemplo
do gradualismo que dei no início do texto. Se todos ancestrais e descendentes
estivessem vivos e dando as mãos, teríamos uma corrente de uma única espécie.
Quero me focar mais no aspecto de ancestrais e descendentes dando as mãos. Em
Wonderful Life, Gould relata para minha surpresa que Robert Bakker foi um de
seus alunos. Ao passo que posso inferir que em algum momento ambos trocaram um
caloroso aperto de mãos. Oras, em seu ensaio “Um contacto com Walcot”, onde
Gould se gaba de ter um cartão de visitas de Charles Darwin, ele aplica o
seguinte raciocínio, quantos apertos de mão ele teria que retroceder até um
aperto de mão metafórico com Darwin? A resposta são 2! Além disso, ele descreve
a viagem que empreendeu para trocar um aperto de mãos com T. H. Clark e assim
ficar a um aperto de mão de Walcott!
Posso me aproveitar então da
ideia do aperto de mão genealógico, e do fato de ter trocado um aperto de mãos com Robert Bakker, para dizer que estou a um aperto de mão de
Gould e esse contato, e saber que agora faço parte de uma genealogia
intelectual que também o abrange, é mais que suficiente para mim. No fim, ele
tinha razão, nada é mais precioso para os paleontólogos do que as ligações.
Referências
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1996. A escalada do monte improvável: uma defesa da teoria da evolução, Companhia
das letras.
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Eldredge, N. & Gould, S.J., 1985.
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Futuyma, D., 2002. Especiação. In Biologia
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2003. A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, Companhia das letras.
Gould, S.J.,
2004. O Polegar do Panda 2a., São Paulo: Martins Fontes.
Gould, S.J., 1982. Punctuated
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https://www.andrew.cmu.edu/user/jksadegh/A Good Atheist Secularist Skeptical
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Gould, S.J., 2000. Wonderful Life,
Gould, S.J. & Eldredge, N., 1977.
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Smith, J.M., 1983. The Genetics of
Stasis and Punctuation. Ann. Rev. Genet, 17,
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