Em 1999 o filme Matrix fez
história no cinema ao trazer incríveis efeitos especiais aliados a uma boa
ficção cientifica dando respiro a um gênero cansado. Para os que desconhecem a
história (pro Netflix já!!) Matrix conta como o mundo em que vivemos é na
verdade uma simulação de computador gerada pelas máquinas, que utilizam a
energia metabólica humana para gerar energia para as máquinas. Contra isso, um
grupo de humanos que conseguiu se desligar dessa simulação retorna a ela para
lutar pela liberdade. Brincando com lendas urbanas, sonhos e outros deslizes de
percepção, Matrix explica o fenômeno do Déjà Vu como uma alteração repentina da
matrix, como se a realidade retornasse um pouquinho devido a mudança. O
protagonista Neo (Keanu Reeves) vivencia isso vendo um gato preto passar duas
vezes na sua frente.
Matrix falha em diversos pontos
de suas explicações científicas ou representações dos fenômenos e o caso do
Déjà Vu é um deles, não se tratando de um fenômeno sensorial, mas sim mnemônico.
Cerca de 96% dos indivíduos já passaram ou vão passar pela sensação do Déjà Vu
(Brown, 2004), o que significa uma alta chance de que o leitor desse texto já o
tenha experimentado. Trata-se de uma sensação de familiaridade ou de já ter
vivido determinada situação (Ratliff, 2006; Illman et al., 2012). Por ser um fenômeno tão recorrente e de certo modo
curioso, pessoas tendem a ser perguntar por que passam por essa experiência, o
que se traduz como um campo de pesquisa científica, mas também uma oportunidade
para os charlatões.
Tem pipocado pela internet uma
série de páginas ligando o Déjà Vu com múltiplos universos, como se
experimentar essa sensação fosse "entrar em frequência com outro eu em
outro universo". As postagens seguem a cartilha já explicada pelo ótimo
texto de Jessica Nunes no Universo Racionalista (http://www.universoracionalista.org/pseudofisicos-os-novos-altos-sacerdotes/).
Temos o físico/futurólogo/escritor de ciência fazendo o papel do sacerdote da
física, o físico ganhador do Nobel servindo como lastro de autoridade e um
monte de más interpretações e achismos sobre o que realmente é ciência e, claro,
a abusada física quântica. Se em um de seus ensaios Gould comparou o uso da
teoria da evolução pelos eugenistas como ter sua filha acorrentada em um porão
de um abusador, a pobre física quântica parece ser a garota que “está pedindo”
devido como se apresenta. Basicamente qualquer um que queira dar alguma
validade a suas ideias coloca a palavra quântico na frente, temos então a cura
quântica, psicologia quântica etc.
O termo quântico deriva do
quantum e está ligado com a quantidade que determinada grandeza física pode
apresentar, no caso a menor quantidade de luz que pode ser absorvida ou emitida
em um processo (Illingworth, 1994). Planck, quem formulou toda a base desse
campo, determinou que toda a radiação eletromagnética é emitida em pulsos. Logo
um quantum (um pulso) equivalia a um fóton de luz. Em 1926 com a formulação da
dualidade onda/partícula por Louis de Broglie e o princípio da incerteza de
Heisenberg fundamentou-se o campo da física quântica (Pessoa Jr., 2011). O
princípio da incerteza pode ser grosseiramente resumido como sendo impossível
saber simultaneamente a velocidade e a posição de um campo eletromagnético (por
exemplo, um fóton). Ao se detectar este fóton em determinada posição, colapsa a
função de onda para as outras posições. Até esse momento, no entanto, o fóton
poderia existir em qualquer posição.
Essa explicação passa longe de
ser elegante, uma vez que a informação deveria viajar mais rápido que a luz
para causar o colapso da função de onda. Einstein, por exemplo, chamava a isso
de força sobrenatural a distância. Na física quântica é conhecida como a
interpretação de Copenhague e ilustrado pelo experimento mental do gato de
Schrödinger (Bromberg, 2011). Everett (1957) foi quem eliminou a necessidade do
colapso da função de onda ao propor que, após uma medição qualquer, as outras
probabilidades para esse fóton continuavam existindo em outros universos que se
desdobravam. Veja bem, para um fóton, ou outra partícula como um elétron.
E essas são as duas ideias
centrais da física quântica e também as duas usadas superficialmente para
justificar as crenças dos místicos da nova era (Pessoa Jr., 2011). Enquanto o
princípio da incerteza é abraçado como a explicação por trás do “querer é poder”
do Segredo, os múltiplos universos são usados para se explicar de tudo, do
plano espiritual a vidas passadas, e agora o Déjà Vu. É o carimbo da autoridade científica que os crédulos precisam para silenciar os céticos que questionam a
suas crenças.
Esqueça que as duas são
antagônicas, o desconhecimento a respeito da física quântica permite que as
pessoas juntem as duas em um universo onde as funções colapsam para uma
probabilidade, mas outras continuam existindo. Curiosamente, pessoas que
compartilham supostas provas cientificas para suas crenças místicas são as
primeiras a fugir da discussão, após provado que suas fontes estão erradas, com
frases como: “mas nem tudo precisa ser provado para existir”.
Por que então a necessidade de
ter um carimbo da ciência validando o que você acredita?
Realmente, a ausência de
evidências não significa evidência de ausências. Porém, sem provas, nada de
ciência. Por isso a ideia de múltiplos universos não é sequer uma hipótese,
quanto mais uma teoria científica, sendo mais um palpite com base em
extrapolação e não possível de ser testado (Steinhardt, 2014). Segundo Ellis
(2011) deveríamos nos perguntar se realmente precisamos de múltiplos universos
para explicar a existência de um e se a resposta for afirmativa, isso não significaria
que todos seriam, na verdade, apenas um único universo?
Quanto ao Déjà Vu, temos algumas
explicações mais parcimoniosas (e, portanto, com grandes chances de serem
verdadeiras, aplicando-se a navalha de Occam), no caso uma anomalia de memória
que nos permite sentir como se estivéssemos re-experimentando uma cena (Brown,
2008). Um estudo de 2012 liga o Déjà Vu com o reconhecimento de similaridades
entre cenas experimentados pelo nosso cérebro. Basicamente, ao experimentar uma
cena que compartilhe elementos parecidos com o que ele já experimentou, ele
associa as duas coisas (Brown et al.,
2012). O fato de certas drogas, como a amantadina e a fenilpropalonamina,
aumentarem as experiências de Déjà Vu (Taiminen & Jääskeläinen, 2001) bem como certas doenças como a epilepsia
(Labate et al 2012) são fortes evidencias a uma causa neurofisiológica. Além
disso conforme Pessoa Jr. (2008) deixou claro em seu ensaio, a física quântica
funciona muito bem para universos micros, mas muitos de seus efeitos são apagados
ou diluídos no gigantesco agrupamento de átomos que forma nosso universo macro,
o resultado é o mesmo de olharmos um mosaico a distância, o que enxergamos é a
grande pintura formada pelas menores partes, totalmente traduzível e explicável
pela física newtoniana.
Assim, embora possamos explicar o
funcionamento de uma bicicleta, de uma moto ou do teorema de Bernoulli pela
física quântica, temos um atalho funcional para explicar todas essas coisas na
mecânica newtoniana. Seria diferente com nossa consciência que, parafraseando
Darwin, trata-se de uma excreção de nosso cérebro?
Provavelmente não. Mayr (2009)
considera a consciência humana como resultado do processo de seleção natural,
tendo evoluído a partir da consciência dos animais. Tanto os processos
conscientes quanto inconscientes de nosso sistema nervoso dependem da transmissão
de impulsos nervosos, explicada pela física newtoniana como a diferença de potencial
da membrana celular (Stevens & Lowe, 2016), portanto, dependentes da
estrutura celular dos neurônios e da química cerebral que geram e controlam
esses impulsos. Logo tanto os processos neurológicos quanto suas patologias e
falhas são explicados pela física newtoniana e em primeira instância pela
neurobiologia e fisiologia.
Não há necessidade, portanto, de
utilizar algo ainda não comprovado pela física quântica como múltiplos
universos para explicar algo bem fundamentado e estudado pela neurobiologia e
fisiologia como o fenômeno do Déjà Vu. Os múltiplos mundos de Everett surgiram
como um bom uso da navalha de Occam ao conseguir uma explicação que eliminasse
a necessidade da força sobrenatural a distância de Einstein. Querer usar essa
hipótese para explicar algo fundamentado na neurobiologia, como o Déjà Vu,
é um corte grosseiro demais para uma navalha afiada.
É melhor matar o gato
abrindo a caixa.
Referencias Bibliográficas
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