Um mito sobre a evolução no qual
as pessoas ainda acreditam, apesar dos esforços de cientistas ilustres como
Stephen J. Gould desmentirem, é a ideia de que a evolução é uma escada para o
progresso no qual os mamíferos, e dentro desses o homem, ocupam o lugar mais
alto como os seres mais evoluídos do planeta e quando olhamos para baixo vemos
nossos primos menos evoluídos tais quais eles sempre foram. Crocodilos sempre
foram rastejantes em terra e aquáticos, lagartos sempre arrastaram suas
barrigas e caudas, tartarugas sempre foram lerdas e pesadas, anfíbios sempre
foram sapos, frios e normalmente vivendo em lugares sujos.
Essas ideias são facilmente
derrubadas ao vermos o registro fóssil e encontrar tamanha diversidade dentro
desses grupos, sendo a única conclusão possível a de que as espécies atuais são
tão evoluídas quanto qualquer outra espécie de mamífero, inclusive nós, e que
seus ramos ocupam a mesma altura dentro da árvore da evolução. Porém é possível
que o ramo dos cetáceos esteja um pouco mais alto que o nosso pois esses
mamíferos, após um período em terra, retornaram a vida nas águas se tornando um
pouco mais derivados do que nossa linhagem de grandes primatas.
Ainda assim os mitos persistem,
em parte porque as definições que popularmente são dadas a esses animais partem
de uma comparação direta conosco: rastejante, lerdo, frio são
antropomorfizações desses animais, e embora evitadas pela ciência atual vez ou
outra ainda aparecem, tendo sido empregadas por diversos naturalistas como
Owen, nas suas descrições e explicações. O estigma de répteis burros e lerdos
que viviam em pântanos, que ainda cerca os dinossauros, vem dessas primeiras
interpretações e comparações com lagartos e crocodilos atuais. Ainda hoje, uma
caminhada num zoológico lotado permite presenciar uma série de comentários
sobre quais bichos são feios, quais são bonitos, quais são burros... todos,
claro, tendo o ser humano como medida padrão.
Outro motivo desta visão
encontra-se na pratica antiga da humanidade para explicar o mundo atribuindo
características humanas a objetos inanimados, a chamada Falácia Patética (Abram
& Harpham, 2011). Dentro dos
mitos das antigas e atuais religiões ela tem sido uma constante, principalmente
por atribuirmos aos animais um significado no mundo mais primordial e quase
sempre para sustentar nossa própria existência.
Não é de se admirar que a
tartaruga tenha sido escolhida para carregar o mundo nas costas ou pelo menos
os elefantes que o sustentavam (posso ver essa conversa se desenrolando em
volta de uma fogueira a medida que a parcimônia é abandonada em favor dos
elementos mais claros e diários: mas o que sustenta o mundo? Quatro elefantes -lógico,
elefantes são grandes, mas não grandes o suficiente para sozinhos sustentarem o
mundo- mas os elefantes onde estão? Em cima de uma tartaruga, um animal
resistente e grande de costas largas formando uma superfície rígida que pode
sustentar os elefantes. Mas e a tartaruga? Oras, a tartaruga está nadando, como
faz nos oceanos, no mar do infinito).
Nem sempre a tartaruga é
escolhida, em outro exercício imaginativo a mitologia árabe traz Bahamut, o
peixe, sustentando em suas costas o touro e em cima do touro uma montanha, na
montanha existe um anjo que segura as sete terras. Uma versão alternativa traz
que nas costas do touro existem rochas que sustentam as água e nas águas está a
Terra. A sequencia pode ter se complicado, mas alguns elementos se repetem, um
animal aquatico sustentando outro ou outros fortes e grandes que por sua vez
sustentam o mundo.
Mas peixes e touros não são o
alvo dessa coluna e sim tartarugas. Em especial porque eu precisava de um
incentivo a voltar a escrever no blog e ele veio na triste noticia do
falecimento de uma das mentes mais brilhantes e afiadas que o Homo sapiens já produziu. Hoje faleceu
Terry Pratchett, que além de um escritor fantástico, era um naturalista amador
com especial interesse em orangotangos (Ooook?!) e plantas carnívoras. Sua
série de livros mais famosa, Discworld, brinca
justamente com o mito da tartaruga que sustenta os elefantes que sustentam o
mundo em forma de disco, um mundo que, nas palavras que abrem um de seus
livros, “foi criado por deuses com mais criatividade do que senso prático”.
Suas histórias satirizam diversas situações da nossa sociedade, mas também
brincam com a impossibilidade de tal mundo existir e da necessidade de forças
mágicas e intervenção divina para que continue existindo ao ponto que seja
impossível duvidar da sua existência.
Voltando as tartarugas, grande A’tuin,
que na mitologia do Discworld sustenta os elefantes, aparece pouco nas
histórias, mas sua presença é tão marcante e sua existência tão determinante na
estrutura das histórias que ela é de longe o personagem mais conhecido – até mesmo
por quem nunca leu os livros. Essa fama é tão grande que em 1995, Köhler, um
paleontólogo do Departamento de Geologia da Universidade de Otago na Nova
Zelândia, batizou uma tartaruga fóssil com o nome de Psephophorus terrypratchetti.
Psephophorus terrypratchetti é uma tartaruga da família Dermochelyidae,
cuja principal característica é não possuir uma carapaça ou plastrão ósseos. O
“casco” das tartarugas, bem como dos Jabotis e Cágados, em geral, é formado por
dois conjuntos ósseos separados (Figura 1). A carapaça, que protege o dorso e as laterais,
possui duas camadas, uma delas de placas ósseas e uma segunda que cobre essas placas (Figura 1 A),
mais fina chamada de escudos e formandos por fibras de proteínas queratinizadas
(Romer, 1997). As placas ósseas da primeira camada são fundidas as vértebras e
costelas (Pough et al., 1993) (Figura 2),
tornando impossível para o animal sair de seu casco como os desenhos animados
gostam de mostrar e tornando verdadeira a maldição de Zeus sobre a ninfa
Chelone que se atrasou para o casamento do líder dos deuses e foi condenada a
carregar sua casa sobre suas costas. O plastrão (Figura 1 B)é formado por placas ósseas
ligadas lateralmente a carapaça (Romer, 1997).
Figura 2: Vista ventral de um esqueleto de Chelydra serpentina. Note as vértebras e costelas fundidas a carapaça (Fonte: Wikipedia). |
O que difere a carapaça das
Dermochelyidae do restante dos Testudinos? As dermoquelides são popularmente
chamadas de Tartarugas de Costas de Couro, e uma espécie muito conhecida
daqueles que visitaram qualquer base do Projeto Tamar é a Dermochelys coriacea que pode alcançar seus 2,5 metros de
comprimento. O nome Costas de Couro não é sem fundamento, ao contrário das
outras tartarugas, as placas ósseas são incrivelmente reduzidas e não se fundem
na caparaça ou mesmo com as vértebras e costelas, ao invés disso, uma grande
quantidade de ossículos formam um mosaico em uma pele espessa e coriácea, livre
das costelas e vértebras (Figura 3). Esse padrão se une com seu equivalente ventral
formado por cinco cristas longitudinais (Romer, 1997). Esse arranjo é motivos
de longos debates sobre a evolução do arranjo carapaça e plastrão. Alguns
estudos tentam colocar a carapaça das dermoquelide como um modelo para os
quelônios basais do qual teria se derivado a carapaça e plastrão atuais (Baur,
1889; Dollo, 1901; Versluys, 1914; Hay, 1922), enquanto poucos consideram as
costas de couro como um estado mais derivado dentro da evolução das Tartarugas
(Zangerl, 1939). De certa forma, a ideia de que uma espécie do gênero Psephophorus, sendo a Psephophorus terrypratchetti a última
depois de outras sete espécies fósseis (Köhler, 1995), fosse um ancestral
direito das Dermochelys atuais foi
predominante até a análise filogenética de Wood et al. (1996) mostrar que o gênero Psephophorus estava relativamente distante de Dermochelys.
Figura 3: Vista externa do mosaico de óssiculos na região dorsal de Psephophorus terrypratchetti. |
O gênero, no entanto, após um
tempo de vida relativamente longo surgindo no Eoceno (56 Ma) veio a desaparecer
no Plioceno (2,56 Ma) sem deixar descendentes (Romer, 1997). Seus fósseis
ocorrerem por quase todo o mundo tendo fósseis na Europa, América do Norte,
África e Nova Zelândia (Köhrle), essa ultima região onde foi encontrada P. terrypratchetti. Se você chegou até
aqui aprendendo algo mais sobre a evolução e morfologia das tartarugas já me
sinto feliz, mas sei que alguns esperam uma lição maior de tudo isso,
especialmente de um texto que começa falando sobre mitos e de como os utilizamos
para explicar grandes episódios.
Pois bem, Köhler encontrou seis
exemplares de P. terrypratchetti
todos das mesma um unidade geológica, em concreções do rio Waihao acima de um
arenito rico em fósseis de moluscos, o que evidencia águas com temperaturas
quentes, Köhler admite uma temperatura entre 18° e 20° com base nos estudos de
isótopos de oxigênio de Devereux (1967, 1968). Atualmente, as tartarugas do
gênero Dermochelys não costumam se
reunir em grupos exceto durante a estação de acasalamento que ocorre em águas
com temperaturas de aproximadamente 20°. Köhl também concluiu, pelo tamanho das
vértebras, que se tratavam de indivíduos adultos. Portanto, os fósseis de P. terrypratchetti da Nova Zelândia
representam um estoque reprodutivo! Muitos desses animais, em semelhança a que
ocorre com a Dermochelys devem ter
dado suas ultimas forças para chegar até ali sendo vitimas da exaustão ou de
predadores.
Peço desculpas pelo spoiler, mas
o livro é cheio de passagens incríveis e a leitura ainda vai ser divertida para
os que não conhecem. Em seu livro a Luz Fantástica, Pratchett coloca o mundo do
Disco em uma rota de colisão com uma estrela vermelha que possuía oito luas
quando Grande A’tuin, a tartaruga que carrega os elefantes que sustenta o
mundo, passa a nadar em sua direção. Aparentemente o único que poderia evitar
isso seria o azarado e inepto mago Rincewind, incapaz de fazer qualquer magia
por guardar em sua mente os oitos feitiços mais poderosos do mundo. Após os
problemas que se seguem na história e quando a Grande A’tuin está próxima
demais da estrela e suas luas, Rincewind libera os feitiços fazendo com que as
luas se quebrem e revelem oito pequenas tartarugas, cada uma com seus elefantes
e mundos. No fim, Grande A’tuin estava indo para seu lugar reprodutivo.
O numero oito tem um grande
impacto sobre as histórias de Pratchett que envolvem seus magos e o leitor mais
atento e fã dos livros já deve ter antecipado o final desse texto. Vejo os
paleontólogos que descobriram cada espécie do gênero Psephophorus como Rincewind e sua jornada junto a Grande A’tuin.
Eles também precisaram viajar para longe de suas rotas normais, às vezes
enfrentando o calor inclemente de uma estrela (amarela, não vermelha, pela
classificação astronômica) e diversos obstáculos involuntários do dever para
com suas ferramentas e conhecimento abrirem as rochas que revelaram cada uma
das sete mais uma espécies de Psephophorus.
A Oitava, claro, não poderia ser ninguém além da simbólica e significativa Psephophorus terrypratchetti.
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